Meio Ambiente

A gota dchr39água para a ressaca

27/08/2016
Ondas de alturas inéditas (4,2 metros), alagamento de vias e garagens. A natureza conspirou para que fenômenos meteorológicos e astronômicos acontecessem ao mesmo tempo e provocassem a ressaca ocorrida domingo passado (21), na Ponta da Praia. Mas estudiosos apontam a dragagem do canal do estuário como a gota d´água para que a situação ganhasse contornos dramáticos.
 
“Quando há uma dragagem, com aprofundamento do canal, a onda chega com mais energia e tende a provocar mais impactos nas estruturas urbanas e transportar mais sedimentos”, explica o biólogo Renan Braga, do Núcleo de Pesquisas Hidrodinâmicas (NPH) da Unisanta. 
 
“A verticalidade do fundo cria uma redução de profundidade abrupta, favorecendo a formação de altas ondas”, reforça o arquiteto José Carlos Lodovici, doutor em Estruturas Ambientais Urbanas pela USP, com enfoque em ‘obras marítimas’, e que durante muitos anos pesquisa as questões específicas da Ponta da Praia.
 
“O aprofundamento do canal, entre outras causas, tem, sem dúvida, responsabilidade nas alterações do padrão de comportamento da ondulação. No exato trecho das ressacas, criou-se um talude, em grande declive, em solo argiloso e pouco compacto, característico do estuário santista, favorecendo deslizamentos que concorrem para a redução da faixa de areia”, completa.
 
Segundo o oceanógrafo Fabrício Gandini, do Instituto Maramar, a entrada da barra de Santos tinha seis metros de profundidade e hoje tem 15 metros. “Um aprofundamento do canal gigantesco causa um talude enorme. Não é de se esperar que nada ocorra”, argumenta.
 
O Ministério Público Federal também atribui à dragagem a causa do problema e, por isso, ajuizou uma ação contra a Codesp, responsável pela intervenção, e o Instituto Brasileiro para o Meio Ambiente (Ibama) por ter emitido licença de impacto ambiental. “Os próprios pareceres dos órgãos ambientais apontam relação direta entre dragagem e a erosão por aumento de velocidade de onda”, afirma o procurador da República, Antonio José Donizetti Molina. “A dragagem tem sua importância, sem dúvida, mas deve ser feita de forma que o desenvolvimento seja sustentável em termos ambientais. E isso não se verificou”, completa. 
 
Os especialistas reconhecem a importância da dragagem, mas defendem que ela não pode trazer prejuízos à cidade. “Impedir a dragagem seria absurdo, o porto tem que se adequar às exigências impostas pela modernidade da navegação. É preciso resolver o problema com tecnologia”, sugere José Lodovici.
 
Tudo junto e misturado
Maré de equinócio (crescente com a aproximação da Primavera ou Outono), Lua Cheia, frente fria (que comprime as águas oceânicas contra o continente, elevando o nível de água), vento forte e chuvas. Todos esses fatores juntos deram forma à receita que resultou na ressaca de domingo passado (21).
 
“Essas ocorrências não são raras de acontecer, mas soma-se o fato do crescimento do nível do mar, um fenômeno de âmbito global de causas ainda não comprovadas cientificamente, e a ação do ser humano”, declara Lodovici. 
 
Ele ressalta que o nível do mar atingido no domingo não teve paralelos na história da Ponta da Praia e que o fenômeno está sendo verificado em Santos, dentro de uma certa rotina sazonal, há cerca de dez anos. “Há poucas semanas, sem qualquer vento mais significativo, a água do mar cobria a avenida”, lembra.
 
Segundo ele, isso só endossa o alerta da comunidade científica mundial: o crescimento do nível do mar. “Ao se confirmarem as ocorrências, que somente são sentidas por ocasião de fenômenos meteorológicos, deverão ser encaradas como assunto de calamidade pública, de envergadura nacional, pelo menos nas orlas marítimas urbanizadas sobre planícies próximas às preamares, e ainda contidas na faixa de latitude mais sujeita aos efeitos das frentes polares”. 
 
Riscos no subsolo
José Lodovici alerta para uma ameaça que está sendo subestimada: o risco que a violência das águas representa ao subsolo e, por consequência, às estruturas dos prédios à beira-mar. “A maior parte dos prédios de Santos foi edificada sobre fundações diretas. Ao tornar-se rotineiro o nível elevado do mar, o lençol freático tende a mudar, podendo modificar a consistência da já reduzida camada de areia sobre a qual se apoiam os prédios”, explica. 
 
Segundo ele, quando a areia está apenas úmida ela fica estufada, mas, quando encharcada, acima de um determinado valor, ela reduz de volume. Como abaixo desta areia há argila marinha, podem ocorrer recalques diferenciais (inclinações como as existentes nos prédios tortos da orla), sobretudo em razão de sobrecargas imprevista nos subsolos lotados de água, esclarece o especialista.
 
Além disso, a declividade da Avenida Saldanha da Gama incide no sentido de favorecer o escoamento das águas no sentido dos prédios, quando deveria ser no sentido do mar. “E tem o fato de a água salgada ser condutora de corrente elétrica, o que dá margem à ocorrência de curtos circuitos nas instalações prediais, além dos veículos, já danificados pela imersão”, completa.
 
As soluções
A Prefeitura anunciou para o próximo verão ações de “engordamento” da praia com areia e a colocação de barreiras removíveis (pedras) na Ponta da Praia. Os recursos virão de ação que corre há 20 anos no Ministério Público, no valor total de R$ 4 milhões que serão liberados mediante acordo. 
 
No entanto, os especialistas contestam a solução. Na opinião do biólogo Renan Braga, do Núcleo de Pesquisas Hidrodinâmicas (NPH) da Unisanta, esta ação apenas vai transferir o problema, “levando o impacto da maré para as outras praias de Santos”.
 
Para o arquiteto José Carlos Lodovici, a proposta de alargamento artificial da faixa de areia comprova  o equívoco da Prefeitura em atacar efeitos, e não as causas. “Vai ‘alimentar’ uma coisa que está sendo consumida, sem saber o que de fato está ocorrendo”, argumenta. Como alternativa, ele sugere a construção de diques de proteção (poldres), a exemplo do que foi feito na Holanda, onde muitas cidades se encontram abaixo do nível do mar. 

E faz uma ressalva: trata-se de uma obra que exige extrema especialidade. “Tem que ser profissional capacitado para lidar com essas forças da natureza, conforme a boa técnica requer”, destaca. Ele cita como exemplos o Deck do Pescador e as muretas da Ponta da Praia que foram edificados na concepção de obra civil, quando deveriam ter sido encarados como obra marítima.
 
Já a oceanógrafa Mariangela Ramos sugere a construção de um quebra mar fora da baía de Santos, que não impedisse a tráfego dos navios, mas que amorteceria os efeitos das ondas fora dela. “Mais próximo da praia, provavelmente será  mais difícil construir uma estrutura, justamente por ser o canal do porto, uma área de circulação de navios”, argumenta. “Sairia mais barato construir esta barreira lá fora do que fazer reparos toda vez que as muretas são destruídas Sem falar no prejuízo para os moradores”, completa.  
 
Contra todas evidências
Em nota, a Codesp contesta que a dragagem interfira nas ressacas e atribui os problemas a fenômenos naturais. “Estudos promovidos indicaram que a frequência de ocorrência de ressacas vem aumentando nas últimas cinco décadas, sendo que as principais causas para esta elevação do número de registros a partir de 2001 parecem estar mais ligadas mecanismos e processos naturais associados às mudanças climáticas e à elevação do nível relativo do mar”, diz a nota.

“Não é difícil supor que esses eventos continuarão a acontecer, e de maneira cada vez mais intensa, independentemente das obras de dragagem”.
 
“Neste contexto, fica claro que a ocorrência de eventos de ressaca independe das obras de dragagem, haja vista que tais fenômenos envolvem condições meteorológicas externas e de maior escala”.
 
A Codesp informou também que em dezembro de 2017 deverá ser concluído estudo encomendado à Universidade de São Paulo (USP) para avaliar os efeitos da profundidade do canal de acesso na navegação marítima. “Essa pesquisa tem o objetivo de diminuir a taxa de assoreamento do canal e consequente necessidade de dragagem”.
 
Prevenção 
A Defesa Civil informou que o fenômeno de domingo surpreendeu a todos, contrariando as previsões devido aos ventos, que atingiram 30 nós (55 km/h).  O biólogo Renan Braga conta que o NPH divulgou um boletim extraordinário com a previsão, alertando sobre elevação da maré e ondas de até 2,60 m na quinta-feira (18). O sensor da Praticagem instalado na Ilha das Palmas registrou, às 17h20 de ontem (21), ondas de 4.25 metros.
 
De acordo com a Prefeitura, diante de alerta sobre possíveis ressacas, a recomendação é não circular na região e evitar veículos em garagens subterrâneas, além da disposição de comportas em edifícios que contam com o dispositivo. Em resposta à possibilidade de indenizar moradores que sofreram prejuízos materiais, a Administração Municipal informou que não tem conhecimento desse tipo de demanda e considera o que aconteceu domingo como um fenômeno da natureza de dimensões imprevistas.