Comportamento

A alquimia do ódio

06/05/2017
por Mírian Ribeiro
Intolerância racial, de gênero, classe, religião, política e até time de futebol. Vivemos em uma sociedade que se declara democrática, porém produz em escala ascendente exemplos de homofobia, xenofobia, misoginia e todas as outras palavras usadas para conceituar o comportamento do indivíduo que não aceita as diferenças. E há quem não aceite a ponto de odiar e ver como inimigo a quem julga “diferente”. 
 
O crescimento dos crimes de ódio é um fenômeno global e o Brasil não está fora da onda de violência desmedida expressa em palavras e fisicamente. A internet, infelizmente, tem sido usada como canal de propaganda de posicionamentos extremos e intolerantes. Quem pertence a uma rede social já percebeu que uma opinião contrária pode resultar em ameaças e perseguições, como ocorreu há poucos dias com uma escritora que publicou um texto sobre cotas.
 
A intolerância também foi escancarada na recente agressão a um grupo de palestinos por militantes de extrema-direita em São Paulo e na expulsão de um casal gay de um bar no bairro do Gonzaga, que resultou em condenação de seus proprietários a uma pena de advertência por discriminação.
 
Tudo que não é espelho
Denomina-se intolerância o ato de depreciar uma pessoa por suas orientações políticas, religiosas, sexuais etc. Ao longo da história da humanidade foram inúmeros os casos em que uma atitude intolerante levou a verdadeiras tragédias.
 
“Eu não concordo com uma palavra do que me dizes, mas defenderei à morte o direito de dizeres”. A célebre frase atribuída a Voltaire (dizem que não é dele) define a tolerância. É fácil ser tolerante com quem pensa igual, o difícil é ser tolerante com a ideia oposta. 
 
Frases curtas e venenosas vão sendo repassadas de geração a geração, validando os preconceitos: “toda feminista precisa de um macho”, “os gays estão dominando o mundo”, “sem terra é tudo vagabundo”, “pé na senzala” (referente a negros), “vai lavar roupa” (dirigido como insulto para mulheres). São slogans que vão se enraizando e servem como muleta para o intolerante.
 
Para o teólogo Leonardo Boff, a tolerância é antes de mais nada uma exigência ética. Ela representa o direito que cada pessoa possui de ser aquilo que é e de continuar a sê-lo. E esse direito foi expresso universalmente na regra de ouro ‘Não faças ao outro o que não queres que te façam a ti’. “A natureza nos oferece a melhor lição: por mais diversos que sejam os seres, todos convivem, se interconectam e formam a complexidade do real e a esplêndida diversidade da vida”.
 
É preciso praticar a tolerância
A psicoterapeuta Márcia Atik acredita que, apesar do discurso de diversidade, estamos vivendo uma época de muita intolerância, “calçada numa relação de poder: ver quem é mais forte, mais rico, mais inteligente, mais viável, numa dicotomia do bom e do ruim. Parece incongruência, mas ainda existe “.
 
Para ela, as politicas afirmativas esclarecem, educam, mas ainda vivemos sob o jugo da competição e agimos no piloto automático, avaliando através de uma ótica que ainda está no inconsciente coletivo. “Como dizia Freud, devemos repetir para elaborar, pois na consciência já se sabe como deve ser, mas o hábito acaba reforçando atitudes repressoras e ultrapassadas”.
 
A não aceitação do que é diferente pode ocorrer pela dificuldade de evolução, que consiste em mudar conceitos e também mudar hábitos e maneiras de pensar, como se estivesse se traindo mudando a ótica. “Muitas pessoas acabam rezando na mesma cartilha de seu grupo sem questionar, por puro comodismo ou medo de rejeição”.
 
Para Márcia, as mães têm um papel muito importante na criação e na evolução de seus filhos, cuidando desses aspectos em sua educação e formação. Quanto à questão de sexualidade, a psicoterapeuta diz que a homofobia ainda é uma realidade por falta de conhecimento. “A educação sexual é necessária, não apenas para a iniciação sexual, mas também para derrubar estereótipos que só fazem crescer a intolerância”.
 
A sociedade nos tempos de internet
Em entrevista à BBC Brasil, o historiador e filósofo Leandro Karnal disse que o discurso de ódio sempre existiu nas sociedades, mas chamou a atenção para a facilidade com que ele se propaga atualmente graças à internet. “Hoje é um clique e um site, com muitas imagens. Facilitamos muito para quem odeia. O ódio tem imenso poder retórico. Ele sempre existiu. Agora, existe este ódio prêt-à-porter, pronto, onde você se serve à la carte e pega seu prato preferido”.  Ele lembrou, porém, que “os mais sólidos preconceitos e violências humanos são muito anteriores à globalização”. 

Segundo ele, o preconceito contra as mulheres é o mais antigo de todos e, provavelmente, o mais sólido. Ele pode ser sobreposto: mulher negra sofre o preconceito duplo, mulher negra lésbica o triplo e assim por diante. O preconceito pode contaminar outras áreas: um homossexual mais “feminino” sofre mais preconceito do que um mais “masculino” porque a misoginia é anterior à homofobia.

Transformação social em curso
Para o cientista político Rafael Moreira, o momento é de polarização, mas ele acredita que a sociedade brasileira está evoluindo. “Vem por ai uma geração mais tolerante e mais emancipada. Estamos vivendo uma transformação social irrefreável”, aposta. Ele cita o exemplo das mulheres, “cada vez mais empoderadas, é uma nova onda de feminismo. São mudanças que geram reações de pessoas refratárias em mexer com privilégios”. 
 
Rafael, porém, entende que no momento atual ainda falta diálogo, empatia. “Há o medo do que é diferente, a resistência em tentar entender a perspectiva do outro. Na questão de gênero, o indivíduo passa a vida toda ouvindo piadas de cunho homofóbico, que servem de embassamento para agressões físicas”.