Comportamento

Sentimento corrosivo

23/09/2017

O assassinato do atleta Matheus Garcia Vasconcelos Alves na noite de segunda-feira (18) expôs a ponta de um iceberg. Em casos extremos, o ciúme pode acabar em crime passional, como o que vitimou Matheus; a jovem Michele Farias (morta a facadas pelo ex-namorado em abril, em Registro); o cantor Dan Nunes (executado com um tiro, em 2015, em Santos) e tantas outras pessoas. Fosse uma exclusividade das relações entre casais, já seria preocupante. O problema é bem maior, uma vez que este sentimento destrutivo está presente também em ambientes profissionais, círculos familiares e grupos de amigos.

Embora alguns pensem que o ciúme seja o "tempero das relações", em doses exageradas ele revela egoísmo, necessidade de controle e sentimento de posse. Especialista em sexualidade, terapia de família e casal, a psicóloga Márcia Atik acredita que o ciúme está longe de ser estímulo. "Sentir ciúme mostra que a relação não está saudável. Se há espaço para ele, é o momento parar e se avaliar". 

A pessoa ciumenta sempre se sente desfavorável em relação aos outros. Por estar constantemente envolta pelo sentimento de insegurança, ela pode demonstrar seu ciúme em diversas faces: criando intrigas entre os familiares, sabotando colegas no trabalho e tentando monopolizar a atenção dos amigos.

"A natureza ciumenta está ligada à infância, à maneira como a criança se relacionou com o mundo, ao fato de não ter aprendido a lidar com frustrações. Ela acaba transferindo isso para o relacionamento com os pais, amigos e até mesmo com seus pertences. Eu aconselho sempre seguir duas regras: observar o ambiente, pessoal ou profissional, e tentar resolver no diálogo. Os ciumentos devem avaliar se estão se colocando em uma posição de inferioridade, de vítima", explica a psicóloga.

 

Terapia pode ajudar
Quem sofre de ciúme patológico desenvolve padrões de comportamento baseados na forma como interpreta a sua realidade. O ciumento é uma pessoa com baixa estima, que vive acompanhada pelo medo de ser traída. Nestes casos, a melhor saída é procurar ajuda profissional, por meio da terapia.

"O ciumento deve ter o mínimo de racionalidade de perceber que há algo errado se ele está mais tenso do que relaxado em um relacionamento. O processo terapêutico ajuda tanto o ciumento como o ciumado a lidar com o problema. Tenho pacientes que fazem terapia por causa do ciúme do parceiro, por exemplo".

Para Márcia, evitar romancear as relações é importante para tratar o ciúme. "Todos nós, pais e filhos, namorados, amigos, precisamos olhar para o outro de forma realista. Há uma grande diferença entre o filho que eu quero ou o namorado que eu sonho e o que eu realmente tenho. Precisamos olhar fora da paixão".
 

De onde vem o ciúme?
Em seu livro 'A paixão perigosa', o psicólogo David Buss explica que o ciúme é uma espécie de mecanismo de defesa desenvolvido pela humanidade ao longo das gerações. "Os homens, para se certificarem de que os filhos gerados em um relacionamento eram verdadeiramente seus, tinham o seu ciúme motivado pela suspeita de infidelidade sexual da mulher. Já elas, diante do temor de que o seu companheiro se envolvesse emocionalmente com uma rival, a ponto de dirigir seus investimentos materiais, afetivos e financeiros para esta pessoa, desenvolveram o ciúme como uma resposta apropriada para a manutenção deste relacionamento", escreve Buss.

No período do Romantismo (fim do séc. XVIII e até meados do XIX), quando a visão de mundo passou a ser centralizada no indivíduo, o ciúme ganhou uma conotação amorosa. Os autores românticos, explica Márcia, voltaram para si mesmos, retratando o drama humano, amores trágicos e ideais utópicos. "Com o tempo se tornou uma relação de posse, uma incapacidade de suportar a rejeição do outro, que se agrava quando há um problema na construção da personalidade da pessoa", conclui.

 

Quando o ciúme mata
Inspirada na obra 'Otelo – O mouro de Veneza', de William Shakespeare, a Síndrome de Otelo é caracterizada pelo ciúme patológico. No romance do escritor inglês, o personagem principal, possuído pelo sentimento doentio, mata sua esposa, Desdêmona. No mundo real, os portadores dela sofrem com o delírio de que seus parceiros são infiéis e podem, assim como no livro, chegar ao extremo de matá-los. 

Ao contrário do que diz o senso comum de que as mulheres são mais ciumentas do que os homens, esta síndrome tem maior ocorrência entre eles. "As sociedades, além de estimularem a agressividade entre os homens, dão mais liberdade para que eles se expressem. E essa expressão se torna mais violenta", diz a especialista. 

Interrogatórios excessivos, exigir senhas de redes sociais, fiscalizar o celular, proibir contato com alguém do sexo oposto, discussões frequentes, acusações de infidelidade são sinais de que o ciúme extrapolou o limite do bom senso.

"Vivemos uma cultura da paixão. As mulheres, principalmente, costumam valorizar o ciúme. Atendi uma paciente que chegava em casa e entregava sua roupa para o marido cheirar, porque ele acreditava que iria sentir o perfume de um outro homem. O ciumado não deve ser o inocente útil, que colabora com o ciumento", alerta.