Comportamento

Problema à flor da pele

18/11/2017

A principal dificuldade do combate ao racismo no Brasil é o fato de boa parte da população negar que o problema existe. De tão presente no cotidiano, situações de discriminação passam despercebidas, a ponto de muitos contestarem a necessidade de haver um "Dia da Consciência Negra". 

Quem nega o problema argumenta que não há discriminação em decorrência da cor da pele, mas sim contra os mais pobres. A questão é que a maioria esmagadora destes pobres são… negros e descendentes, uma herança diretamente ligada ao regime de escravidão iniciado com a chegada do primeiro navio negreiro trazendo africanos, em 1531.

"Libertos" em 1888, pela Lei Áurea, os negros sofreram não só com a falta de oportunidades, mas, principalmente, por serem considerados "uma raça inferior", mais semelhante a animais domésticos do que seres humanos. Os imigrantes europeus, por exemplo, receberam outro tratamento ao chegarem ao Brasil: uma série de incentivos e também a missão de "embranquecer" a população. 

Os números comprovam a desigualdade econômica e social em decorrência da raça: 76% dos mais pobres (renda de até R$ 130 por pessoa) são negros. Na camada do 1% mais rico (quem ganha mais de R$ 13 mil por mês), 79% são brancos. Os salários médios dos negros no Brasil são 2,4 vezes mais baixos que o dos brancos -muitas vezes ao exercer a mesma função. São dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Se fossem considerados os dados apenas da população negra, o Brasil despencaria da 79ª colocação para a 105ª no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), levantamento da ONU usado para medir o nível de pobreza de um país.

 
Questão estratégica
Os efeitos da desigualdade social em decorrência da raça não pode ser um assunto a ser discutido apenas entre os ativistas afro-brasileiros, mas também pela chamada população "não-negra". Não apenas por uma questão de compaixão e justiça, mas também pelo aspecto econômico.

Apesar de serem maioria, os negros e descendentes respondem por apenas 20% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, isto é, o esforço desta parcela da população (54%) gera R$ 1,2 trilhão por ano. Caso tivesse melhores condições de saúde, mais qualificação profissional e oportunidades, entre contingente poderia contribuir ainda mais para a economia do Brasil, fazendo a quantidade de riqueza no Brasil dobrar, segundo estimativa do Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos (Dieese).

 

Desproporcionalidade
Não faltam exemplos para evidenciar a discrepância entre o número de brasileiros negros ou descendentes e sua participação na sociedade. Apenas 15,7% dos juízes brasileiros são negros. Na Bahia, onde 76,3% da população se identifica como afro-brasileira, apenas 9 dos 470 procuradores do Estado são negros ou descendentes. No Congresso Nacional, apenas 8,5% dos deputados são negros.

 

ONU: racismo no Brasil é estrutural e institucionalizado
Em um informe oficial divulgado em Genebra, a Organização das Nações Unidas afirma, com todas as letras, que "o racismo no Brasil é estrutural e institucionalizado e permeia todas as áreas da vida". O documento foi elaborado às vésperas da Copa do Mundo, após a visita de peritos do órgão internacional.

"Muitos acadêmicos nacionais e internacionais e atores ainda subscrevem ao mito da democracia racial. Isso é frequentemente usado por políticos conservadores para descreditar ações afirmativas", diz o documento. 

"O Brasil não pode mais ser chamado de uma democracia racial e alguns órgãos do Estado são caracterizados por um racismo institucional, nos quais as hierarquias raciais são culturalmente aceitas como normais", destacou a ONU. 

"Os negros no País são os que mais são assassinados, são os que têm menor escolaridade, menores salários, maior taxa de desemprego, menor acesso à saúde, são os que morrem mais cedo e têm a menor participação no Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, são os que mais lotam as prisões e os que menos ocupam postos nos governos", diz outro trecho do relatório.

A entidade sugere que se "desconstrua a ideologia do branqueamento que continua a afetar as mentalidades de uma porção significativa da sociedade".

 

Data para reflexão
Quem busca relativizar a necessidade de um Dia da Consciência Negra costuma apontar a existência de um "racismo reverso", isto é, militantes que exagerariam e veriam discriminação racial por todos os cantos. A verdade é bem outra. Realmente, há extremistas nos movimentos de defesa dos afrodescendentes assim como há fanáticos entre religiosos, simpatizantes de partidos políticos e torcedores de times de futebol. Assim como em diversas outras causas, são os que fazem mais barulho mas não representam a totalidade dos ativistas (negros, descendentes, pesquisadores, representantes de entidades etc).

O Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, não é data só para celebrar a importância do samba, da capoeira e do acarajé na cultura nacional, mas momento para refletir sobre as causas e os prejuízos que a desigualdade em decorrência da raça provoca, e quais ações precisam ser adotadas para reverter este quadro.

Começa pela necessidade de mais brasileiros se reconhecerem como afrodescendentes: os próprios pesquisadores do IBGE acreditam que a parcela de negros e descendentes no Brasil é maior que os 54% indicados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, já que é o entrevistado que autodeclara sua raça -não o entrevistador que coleta as informações.

Passa pelo reconhecimento de que a há discriminação em decorrência da raça (daí o abismo econômico e social) e segue na adoção de políticas afirmativas consistentes, que estão longe de ser mero paternalismo, mas sim medidas que gerem oportunidades, por mais que haja quem torça o nariz para programas como o Bolsa Família e cotas nas universidades. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, 73% dos atendidos pelo Bolsa Família são negros ou descendentes e deixaram a situação de extrema miséria (tinha renda mensal menor que R$ 77 por pessoa da família). Dos 13 milhões que começaram a ser atendidos, em 2003, 3,5 milhões abriram mão de receberem o benefício por entenderem não precisar mais.

O Ministério da Educação informa que em 1997, antes do estabelecimento das políticas de cotas nas universidades, apenas 4% dos negros ou descendentes entre 18 e 24 anos cursavam ou tinham concluído um curso de graduação no Brasil. Em 2013, foram 19,8%. Em consequência, aumentou a participação destes jovens no mercado de trabalho, em vagas que exigem mais qualificação.