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Vacina na ignorância

21/07/2018

Na segunda década do terceiro milênio estamos retrocedendo no mínimo um século na história da humanidade, para uma época em que uma em cada cinco crianças morria antes de completar 5 anos de doenças infeccionadas, hoje evitadas com vacinas.

 

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a vacinação infantil se tornou obrigatória no Brasil desde os anos 1970. No entanto, dados do Ministério da Saúde mostram que a taxa de imunização foi a pior dos últimos 12 anos: 84%, em 2017 ante a meta de 95%, recomendada pela Organização Mundial de Saúde.

 

As baixas coberturas vacinais, principalmente em crianças pequenas, acenderam o sinal de alerta no país e vêm sendo apontadas como um dos motivos para o aumento da mortalidade infantil no Brasil, depois de 26 anos de queda.

 

Em 1990, a taxa era de 47,1 mortes a cada mil crianças antes de completar um ano de vida. Este índice foi baixando ano a ano até alcançar 13,3 em 2015. Só que em 2016 subiu para 14. Também houve aumento de mortes evitáveis em crianças até 4 anos de idade. Hoje, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 2 e 3 milhões de mortes sejam evitadas a cada ano pela vacinação.

 

Doenças do passado voltam a ameaçar

A volta de doenças quase erradicadas, como o sarampo, rubéola, ca­xumba, difteria, tétano, co­queluche, poliomielite (paralisia infantil), e o au­mento da incidência de outras doenças evitadas com vacinas, são os graves riscos desse descuido da população em vacinar as crianças. E há displicência também com outras doenças que acometem jovens, adultos e idosos, como a hepatite B, HPV, febre amarela, pneumonia por haemophilus influenza, gripe.

 

Em reunião com representantes de estados e municípios, o Ministério da Saúde alertou que 312 municípios brasileiros estão com cobertura vacinal abaixo de 50% para a poliomielite, uma doença considerada eliminada do país. Há também o reaparecimento de casos de sarampo em cinco estados e em países vizinhos. Apesar da vacina contra a gripe ainda estar sendo ofertada, mais de seis milhões de pessoas do público prioritário deixaram de se proteger contra a doença este ano.

 

Até onde vai o direito de cada um

Mas o que faz com que famílias deliberadamente deixem de vacinar seus filhos contra males potencialmente letais e capazes de deixar seqüelas?  Além de questões re­ligiosas, modismo ou naturalismo, cresce no mundo um movimento anti-vacina, que curiosamente ganha força em países mais desenvolvidos. Uma situação sentida também no Brasil, país que sempre foi exemplo internacional de um modelo de vacinação pública.

 

“Esta é uma contracultura no mundo inteiro, começou com muita força nos países nórdicos e apoiada nas fakes news em redes sociais. Espalhou-se que o sarampo provoca autismo. Não há qualquer embasamento científico, nenhum trabalho sério que faça resistir este conceito. A impressão que passam é que a vacina causa problema ao invés de resolver. É uma coisa pré-histórica”, lamenta o infectologista Ricardo Hayden.

 

O temor com relação aos efeitos colaterais também não procede, garante ele. “As reações são muito bem toleradas na média, são mínimas perto dos efeitos colaterais dos medicamentos de uso comum”, compara. “A internet mais tem atrapalhado do que ajudado neste caso, até porque as pessoas não fazem questão de checar o que recebem”.

 

Hayden questiona até onde vai o livre arbítrio dos pais quando está em jogo a saúde de crianças que não têm o poder de decisão. “No Brasil o calendário é obrigatório até certo ponto. Nos EUA é mais compulsório.

 

Em alguns estados americanos existe obrigatoriedade de vacinar, como na Califórnia”, diz o médico, que defende o aperfeiçoamento da legislação sanitária nesse sentido.

 

O fato da população não conviver mais com mortes por pólio, sarampo e outras graves doenças infantis, reduz a percepção do risco, que nem por isto deixa de existir. ”Morre gente com sarampo na primeira infância. E também adulto jovem porque não fez a revacinação, um percentual de pessoas perde a capacidade vacinal ao longo do tempo e fica exposta, em especial à caxumba e ao sarampo”, diz.

 

A coordenadora do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde, Carla Domingues, alerta que o sarampo pode matar ou deixar seqüelas irreversíveis se a criança não receber as duas doses, a primeira aos 12 e a outra aos 15 meses. “As pessoas não convivem mais com essas doenças e começam a achar que não há necessidade de vacinação. Infelizmente, foram registrados mais de 20 mil casos de sarampo na Europa em 2017. Países como Itália, França, Grécia tiveram surtos da doença”.

 

Brasil na vanguarda das vacinas

O Programa Nacional de Imunizações é uma das iniciativas de maior sucesso no Brasil. O programa oferece gratuitamente 14 vacinas para crianças, 8 para adolescentes e 5 para adultos e idosos, num total de 300 milhões de doses disponíveis nos postos de saúde. Carla Domingues ressalta a importância de guardar a caderneta de vacinação para facilitar o monitoramento da proteção vacinal do cidadão.

 

Através das vacinas são injetados antígenos mortos ou inativos que estimulam a produção de anticorpos e de células de memória. Assim, o organismo se torna imune à doença sem tê-la contraído. Existem vacinas tanto para doenças causadas por bactérias, como a tuberculose e a cólera, outras para doenças provocadas por vírus como a hepatite e a gripe.

 

Campanha vacinará contra poliomielite e sarampo

A campanha nacional de multivacinação este ano será realizada de 6 a 31 de agosto e terá ação mais focada contra a pólio e o sarampo. O Dia “D” será em 18 de agosto. “Nós sentimos em Santos um decréscimo muito pequeno na cobertura vacinal, mas a busca ativa continua nas unidades básicas e pelos agentes comunitários”, afirma a coordenadora da Vigilância Epidemiológica de Santos, Ana Paula Valeiras.

 

Segundo ela, o último caso de sarampo na cidade foi em 2011, um adolescente que havia viajado para outra região. A cidade bateu a meta de vacinação contra a febre amarela. No caso da gripe, a imunização continua para os grupos prioritários nos postos onde ainda há estoque de doses.

 

Questão de saúde pública

A vacinação é um dos melhores métodos para prevenir as principais doenças infectocontagiosas da infância. E proporciona benefício individual e também coletivo, à medida que diminui a circulação dessas doenças na população em que essas crianças convivem. E há outros ganhos, como menor taxa de hospitalização, de óbito, de sequelas, de abstinência no trabalho.

 

“Quanto mais pessoas vacinadas, maior a proteção conferida inclusive aos não vacinados. Isso é o que chamamos de efeito rebanho.O vírus não consegue se instalar porque tem grande contingente de gente protegida”, explica Hayden.

 

Vacinação é responsabilidade de todos

A união de esforços é senso comum para reverter a incapacidade de prevenção e gestão de políticas de saúde no país. “Diante do crescimento de adeptos do movimento anti-vacina, não há um monitoramento do Ministério da Saúde ou Anvisa para entendimento, argumentação e até propostas de diálogo”, argumenta Denize Ornelas, médica de família e diretora da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).

 

Uma solução proposta pela entidade é uma ação educativa individual nas unidades básicas de saúde para conhecimento sobre quais são os medos e receios não só dos pais, mas de adultos que querem se vacinar, mas adiam o procedimento por falta de esclarecimentos e não terem um acolhimento necessário quanto as suas dúvidas.

 

O infectologista Ricardo Hayden também defende a mudança de estratégias para atingir um maior número de pessoas. “A coordenação tem que partir do Governo Federal, que parou de investir em campanhas de divulgação, em conjunto com Estados”. O médico lembra que há inúmeras estratégias, como campanhas de divulgação com adesão de pessoas famosas, horários flexíveis para atender a necessidade de pais e mães, entre outras. “Mas tudo começa pelo item mais simples, que é o da promoção da saúde, como visita domiciliar do agente comunitário para orientar desde a correta escovação dos dentes. Temos ótimos cérebros para pensar”, enfatiza.