Comportamento

Mete a colher, sim!

11/08/2018

As cenas da advogada Tatiane Spitzner sendo espancada pelo marido, Luis Felipe Manvailer, impressionaram o país. Ironicamente, a morte dela ocorreu logo às vésperas dos 12 anos da Lei Maria da Penha, que foi um avanço no combate à violência contra a mulher. 

Trata-se de um problema que ainda não recebeu a devida importância. O Brasil é um dos países onde mais ocorrem feminicídios —assassinato cometido em função de a vítima ser mulher: ocupa a quinta posição em um ranking de 83 países. 

Segundo o Atlas da Violência, levantamento feito pelo IBGE e divulgado em junho, em dez anos, os casos de feminicídio aumentaram 15,3%, passando de 4.030 ocorrências em 2006 para 4.645 em 2016. Numa conta rápida: uma mulher assassinada a cada duas horas. Na maior parte das vezes, os crimes foram cometidos por maridos, namorados ou ex-companheiros. 

Ainda que não cheguem a um desfecho fatal, o número de casos de violência é assustador. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), somente em 2017, tramitaram na Justiça brasileira quase 1,5 milhão de processos referentes à violência doméstica e familiar.

Mas de acordo com a titular da Coordenadoria de Políticas para a Mulher da Prefeitura de Santos, Diná Ferreira, o problema é muito maior. Ela estima que, para cada caso de violência registrado, outro não foi notificado.

Ela avalia que a grande quantidade de casos é consequência das características culturais do país, onde o machismo ainda predomina. “Os homens se sentem donos das mulheres. Agridem física e psicologicamente. Muitos dos agressores assistiram o pai agredir a mãe. Então, acredita que é normal”, argumenta. 

A coordenadora acrescenta que muitos homens acabam “descontando” na mulher os problemas que já tem: dificuldade financeira, no trabalho, a derrota do time de futebol. “Em dias de jogo, o número de agressões contra a mulher aumenta”, revela. “A violência está ligada ao uso de álcool e drogas, pois potencializam a agressividade”. 

Diná Ferreira aponta outro motivo de violência contra as mulheres. Com o passar do tempo, elas deixaram de ser meras donas de casa e mães, conquistaram espaço no mercado de trabalho e, consequentemente, mais independência. “Antes, a regra era o homem tomar a iniciativa de acabar com o relacionamento. Hoje não, e muitos têm dificuldade de aceitar o fim. Pior ainda se ver a mulher em outro relacionamento, após a separação. Por isso, é alto o índice de crimes cometidos por ex-marido e ex-namorados”.

 

Lei Maria da Penha
Instituída em 7 de agosto de 2006, a Lei 11.340 foi um divisor de águas no combate aos crimes contra a mulher. Recebeu o nome de Lei Maria da Penha em homenagem à farmacêutica cearense que sobreviveu a duas tentativas de homicídio do então marido (na primeira, levou um tiro que a deixou paraplégica; a segunda, por eletrocução). A luta dela por justiça durou 20 anos até Marco Antonio Heredia Viveros ser condenado e preso.

Entre os avanços, a Lei Maria da Penha prevê medidas protetivas (como determinar que o agressor se mantenha a determinada distância da vítima) e também a tipificação da violência não só física, mas também psicológica, patrimonial e sexual. Além disso estabelece que o registro da agressão independe da vontade da vítima, já que muitas vezes as mulheres deixaram de dar queixa por vergonha ou medo.
Em 2015, o feminicídio foi adicionado ao rol dos crimes hediondos, como estupro e latrocínio, e prevê pena de prisão de 12 a 30 anos.

 

Sinais de alerta
A coordenadora de Políticas para a Mulher explica que a vítima deve ficar atenta a comportamentos abusivos. “Não é de um dia para o outro que o homem começa a agredir. A violência é um processo. Começa reclamando, xingando, desqualificando, humilhando, proibindo, para em seguida partir para a agressão física. Primeiro é apertar o braço, depois puxar o cabelo, dar um tapa. E isso vai evoluindo, daí para o assassinato”, alerta. 

“As mulheres devem ficar atentas a estes sinais. Não permita! Isso vai crescendo, chega à violência física e a psicológica, que é extremamente cruel, pois não deixa marcas no corpo mas provoca sequelas terríveis. Muitas mulheres entram em depressão e ficam extremamente fragilizadas”, completa. 

É preciso denunciar
O sucesso do combate à violência contra a mulher depende da formalização da denúncia. Por vergonha ou medo (de ficar sem o companheiro, por depender financeiramente dele ou temer prejuízos aos filhos no caso de uma separação), muitas mulheres ocultam o seu drama. 

“O primeiro passo é ela procurar ajuda, ir à Delegacia da Mulher. Nós vamos ouvir o relato e identificar quais crimes estão ocorrendo, registrar o boletim de ocorrência e os exames periciais necessários, quais crimes foram praticados e orientar como ela deve proceder, se ela quer ir para um abrigo, como será feita a separação e a guarda dos filhos, pensão alimentícia”, explica a titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Santos, Fernanda dos Santos Souza. 

Ela revela que a maior parte dos casos ocorre no interior da residência e, muitas vezes, sem testemunhas. “Pode haver uma dificuldade de produzir provas, mas isso não impede o processo criminal e a punição, nem que ela consiga medidas protetivas. A Lei Maria da Penha protege a mulher contra violência física, psicológica, patrimonial e sexual”, esclarece.

A  delegada reconhece que é extremamente difícil para a vítima denunciar, já que existe uma relação afetiva, em muitos casos, filhos e até mesmo questões financeiras e patrimoniais. “Denunciar é o pontapé inicial para ela dar um novo rumo na sua vida. O que não dá é para ele continuar com esse relacionamento que só lhe traz malefícios. Ela tem que romper este ciclo”, recomenda.

 

Metendo a colher
Se você presenciar agressão a uma mulher na rua, ou mesmo ouvir barulho de briga no vizinho, não titubeie: ligue 190, Polícia Militar. “Este ditado de ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’ está mais do que ultrapassado”, lembra a delegada. “O caso do Paraná talvez pudesse ter sido evitado”, completa.

 

Muito a avançar
Apesar de ter havido um avanço, ainda há várias dificuldades no combate à violência contra a mulher. Além da cultura machista do agressor, muitos integrantes do poder público ainda não estão preparados para lidar com o assunto adequadamente. 

A titular da DDM de Santos explica que o atendimento às vítimas melhorou, mas ainda há um trabalho de conscientização a ser feito. “Antes, o policial de plantão na delegacia comum realmente atendia a mulher com seus valores, muitas vezes machistas. Hoje, com o a delegacia especializada isso mudou. Nossa dificuldade é em municípios que não têm delegacia especializada. E também entre policiais militares. Já teve vítima que se queixou que o PM perguntou o que ela tinha feito para ter apanhado. É uma coisa cultural, os policiais saem da sociedade e, portanto, o comportamento machista pode existir. Graças a Deus isso tem diminuído. Os policiais homens estão respeitando mais as vítimas de violência doméstica”, declara. 

No Poder Judiciário, ainda há muito a se avançar. Um levantamento realizado em Brasília (Anis/Senasp), em 2013 indica que a Lei Maria da Penha é citada em apenas 33% dos processos de homicídio de mulheres, entre 2006 e 2011. Já a professora Marta machado, da Fundação Getúlio Vargas, revela que em sua pesquisa viu juízes querendo investigar quem era a mulher, “se era boa mãe, dedicada, mulher direita. É a mobilização dos estereótipos femininos como forma de justificar a violência”.

Dois subterfúgios jurídicos muito usados no passado já não têm mais eficácia: o argumento de que o homem matou “em legítima defesa da honra” e que o crime foi motivado por “violenta emoção”. “Não cola mais”, adverte a delegada Fernanda dos Santos Souza.

 

Atendimento
Em Santos, a Prefeitura mantém programas de prevenção e atendimento a mulheres vítimas de violência. Feitos por psicólogos e assistentes sociais nos os Centros de Referência Especializados da Assistência Social (Creas), visam interromper a violação de direitos e ajudar a mulher a buscar novos horizontes. 

Há também a Casa das Anas, um espaço com capacidade para 24 pessoas, onde as mulheres (com ou sem filhos), podem ficar por até um ano. O endereço do local é sigiloso, para preservar a segurança. 

Além disso, um convênio entre Prefeitura e OAB oferece orientações em assuntos como investigação de paternidade, ações de divórcio, execução de alimentos, regulamentação de serviços, adoção, guarda e orientações gerais. 

A Coordenadoria de Políticas para a Mulher orienta as vítimas de violência e promove trabalhos de prevenção e campanhas de incentivo a denúncias de violência.

Palestras- A partir de 30 de agosto, na OAB de Santos, psicólogos e médicos vão realizar palestras destinadas a homens, orientando como administrar o estresse e evitar que se tornem violentos com as mulheres. 

 

Dique-denúncia – Telefone 180 (ligação gratuita).
Coordenadoria da Mulher – Rua XV de Novembro, 183, Centro de Santos (3202-1884)
Delegacia de Defesa da Mulher – Rua Assis Correia, 50, Gonzaga, telefone 3235-4222.