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Como juntar os cacos após as eleições?

03/11/2018

O Kintsugi é um dos aspectos mais bonitos da cultura milenar japonesa. Ele consiste na técnica de reparar peças de cerâmica quebradas, unindo os fragmentos com ouro. Tem vários significados: destacar que a antiguidade deve ser preservada; a aceitação do imperfeito; um reparo pode ser mais forte que o estado original; o ato de reparar e unir é valioso. 

 

A eleição presidencial deste provocou brigas dramáticas entre amigos, familiares, colegas de trabalho ou estudo, desestabilizando relações e provocando rupturas aparentemente irrecuperáveis. A campanha eleitoral acabou, o resultado está definido, mas a vida continua. E as relações, como ficam? É possível conseguir uma reconciliação? Aliás, há casos em que é adequado buscar a reaproximação ou é melhor mesmo terminar definitivamente a convivência?

 

Em busca de respostas para estas e outras questões ouvimos a doutora em Psicologia Social Gisela Monteiro e o coach Esmeraldo Tarquínio Neto, que durante muito tempo comandou audiências de mediação e conciliação. Confira:

 

O que você recomenda para se conseguir uma reconciliação?

 

Gisela Monteiro – Penso que é preciso deixar a poeira assentar, algum tempo passar para que as pessoas retomem a conversa com mais tranquilidade. As relações se estabeleceram ao longo do tempo, com convivência e proximidade. Jogar toda uma história fora por divergência política parece um pouco desproporcional. O que aconteceu foi que, no calor das discussões, muitos saíram do escopo das ideias e levaram para ofensas pessoais, ultrapassando limites de bom senso e respeito pessoal. Se as pessoas puderem reconhecer que foram além do devido, vale a pena se aproximar e pedir desculpas, hastear de uma bandeira branca em nome da história da relação e do afeto envolvido.

 

Esmeraldo Tarquínio – Primeiro é preciso saber se as pessoas querem se reconciliar. É muito pouco provável conseguir isso quando só um lado quer. Nesse caso, o que deve acontecer, mesmo que de forma tímida, é a vontade de se reconciliar. Num segundo momento, fazer com que as pessoas falem o que gerou a dificuldade, para a manutenção de uma boa relação, equilibrada, civilizada. Mas um processo de reconciliação sempre vale a pena. 

 

Há espaço para continuar falando de política ou é melhor deixar para lá?

Gisela Monteiro – Sugiro uma reflexão sobre o grau de envolvimento emocional com o tema, e dos ganhos e perdas que se teve nessas discussões. Depois de todo este furacão, é prudente pensar no caminho a seguir. É difícil sair do tudo para o nada, fica um vazio. Mas uma pausa reflexiva é sempre saudável, com uma retomada em outro ritmo e intensidade.

 

Esmeraldo – É um grande equívoco as pessoas só falarem de política no período da eleição. Política deve ser tratada durante todo o ano, todo o tempo. As pessoas não podem se mobilizar apenas no período eleitoral. Não é melhor deixar para lá, não. As pessoas devem procurar, com essas diferenças, encontrar o que é igual, convergente. As divergências são divergências.

 

Muitos debates entre amigos chegaram ao extremo, inclusive algumas pessoas dizendo que “não estavam acabando a amizade por causa de política”, mas sim porque a discussão acabou revelando que o outro tem opiniões reprováveis (racismo, machismo, homofobia etc). Então, é o caso realmente de romper relações?

 

Gisela Monteiro – Reforço que cada um deve pensar sobre todo o processo. Em momento de intensidade emocional, muitos falam o que não pensam, escolhem palavras apenas para ofender ou ganhar a discussão. Outros revelam exatamente o que pensam, e não falavam por alguma razão. Esta é uma diferença importante: avaliar se foram palavras ao vento ou revelações de valores antes escondidos ou disfarçados. Não é uma avaliação simples ou fácil. Aí está o cerne do problema. Feita a distinção, que cada um decida pelo rompimento ou não.

 

Esperaldo – É preciso diferenciar o que é relação e o que é amizade. Uma relação é no trabalho, no colégio, na faculdade, no clube. Relação é diferente de amizade, você a mantém, pois tem que trabalhar com aquela pessoa, estudar ao lado dela. Na praia ou no restaurante, você não precisa ficar perto, nem sentar ao lado dela. Já as amizades têm limite de diferenciação ideológica. Eu, particularmente, não tenho a menor condição de conviver, ou ter amizade, com alguém que se declara racista ou homofóbico. Essa relação de amizade passa a inexistir por opção das partes.

 

Daqui a algumas semanas as pessoas vão estar se reunindo em confraternizações de fim de ano, na família, no trabalho. Como se comportar diante de pessoa com quem ‘tretou’?

 

Gisela Monteiro – Independente do clima tenso, a convivência social deve ser preservada com um tratamento educado e respeitoso. Se houve um rompimento, mesmo que temporário, não é preciso fingir que é amigo. Mas não cumprimentar ou ignorar a presença do outro pode deixar uma situação desagradável para quem está perto e não tem culpa do que aconteceu. Encontre um lugar perto de pessoas com as quais tem boa relação e aproveite a festa!

 

Esmeraldo – Quando um não quer, dois não brigam. Então, se tem uma pessoa que não está disposta a falar sobre esse assunto, você faz um acordo não expresso de não falar sobre isso. Isso salva estas confraternizações. Mas acho pouco provável que aconteça em alguns casos pontuais, porque sempre vai ter aquela pessoa que não consegue segurar que seu candidato ganhou ou então aquela que não suporta a ideia de seu candidato ter perdido. Então, pense que você não pode estragar aquele momento, pois vai estar com pessoas que você gosta. Então, procure conversar com outras, com as quais você não discutiu, que votou no mesmo candidato, ou com pessoas que têm equilíbrio, que são civilizadas. Quando um não quer, dois não brigam, mas é bom também que o outro perceba que o primeiro não quer brigar e pare com seu ímpeto de discussão. Isso demostra uma vontade do indivíduo querer discutir o que pode acontecer com seu país, mas não pode ser apenas na época da eleição. Política é um exercício de cidadania constante e implica, obrigatoriamente, uma postura civilizada. Na disputa política, só não vale ofensa moral e agressão física. Os outros argumentos têm validade. Se as posturas são irreconciliáveis, porque você descobriu na pessoa um pensamento, uma postura, que lhe desagrada, não tem porque ficar insistindo.