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Anjos e Demônios

15/12/2018

João de Deus não foi o primeiro líder espiritual acusado de cometer abuso sexual. Nem o segundo, terceiro, quarto, muito menos será o último. Ele se junta a um grupo que inclui o guru hindu Prem Baba, padres católicos pedófilos, pastores evangélicos, pais de santo e até mesmo um monge budista, que se aproveitaram de sua posição e da fragilidade das vítimas para cometerem crimes. 

 

Crime frequente e oculto

Infelizmente, abusos sexuais são frequentes nos mais diversos ambientes (na família, no trabalho), mas quando ela envolve líderes religiosos o crime ganha contornos muito mais dramáticos. “Há uma diferença fundamental. No trabalho, existe a pessoa tem medo de ser castigada se não ceder às investidas, ser rebaixada, perder o emprego, ser preterida numa promoção. É uma chantagem, mas isso funciona na base da consciência, quem está sendo assediado. É revoltante, mas é clara. A pessoa sabe que está sendo submetida a uma situação perversa”, explica o psicanalista Jorge Forbes. “Na questão mística, a coisa ganha proporções diferentes, porque entra a questão da crença. As pessoas que recorrem a estes curandeiros normalmente têm um problema muito grave, muitas delas já esgotaram as tentativas de cura por métodos tradicionais, científicos, e passam a ter vontade de acreditar numa força superior. Existe nela uma profunda vontade de acreditar numa força curativa, seja qual for o deus invocado”, completa. 

O terapeuta Darrell Champlim reforça: “A pessoa que vai em busca de uma ajuda desta natureza (espiritual) está em um momento difícil da vida e alguém com alavancagem emocional que está numa posição superior pode significar uma diferença. O líder religioso tem o poder do invisível, ou pelo menos diz que tem. Quando a saúde da pessoa está em risco, ela corre para qualquer coisa, vai procurar uma saída onde for, é um pragmatismo intuitivo”, afirma. 

Champlim lembra de outro caso de grande repercussão: o do médico Roger Abdelmassih, que abusou sexualmente de centenas de pacientes. “Ele era uma autoridade em reprodução humana, as mulheres recorriam a ele depois de terem esgotado todas as outras possiblidades, ele se valeu disso para cometer os crimes”. 

O psicanalista Jorge Forbes explica que o abusador, por receber esta fascinação, se acha no direito de cometer os crimes. “Acabam sendo perversos, usam esta confiança para fazer as pessoas serem servas sexuais”.

 

Por que as vítimas demoram tanto para denunciar?
Infelizmente, não é raro vítimas de crimes sexuais ficarem anos em silêncio. Pior ainda quando o autor dos abusos é uma personalidade idolatrada por milhares. “A vítima tem a ideia de que aquilo só aconteceu com ela e se retrai. Acredita que não vai ter apoio, tem medo de que ninguém vai acreditar. Também sente culpa, fica achando que de alguma forma tenha instigado, pela forma de falar, se comportar, se vestir”, explica o terapeuta Darrel Champlim. “Isso acontece todos os dias, em escritórios, consultórios…”, complementa.

Medo, culpa, frustração, traição. Esta verdadeira tempestade de sentimentos deixa a vítima confusa. “A vítima sabe que aquilo está errado, fora do que ele estava esperando. E sabe que do outro lado da parede daquele quarto tem mil pessoas, que acham aquele cara incrível. Ela sabe que se contar vai ser desacreditada, porque todas as outras pessoas têm necessidade de crer em um deus salvador”, reforça o psicanalista Jorge Forbes. 

“Existe esta cumplicidade mútua, entre abusador e abusado, mas por razões distintas. Quando se vê aparvalhada por um ato perverso, que é usurpação desta crença, a vítima se intimida porque tem vergonha desse engodo. É uma geleia de medos e culpas que demora para se desfazer. Mas quando 200 pessoas falam, a pessoa começa a se sentir acompanhada e ter outra percepção e com coragem de relatar o estupro”, finaliza. 

 

Abusador contumaz
A delegada titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Santos, Fernanda Santos Souza, avalia que, apesar de vários abusos terem ocorrido há muito tempo, é possível sustentar uma denúncia contra João de Deus. “Em crimes sexuais, a palavra da vítima tem muito valor, porque ela traz uma riqueza de detalhes do fato e existe uma presunção de veracidade no que ela está falando”, explica.

“Ainda que não tenha testemunha ou vestígio nenhum, como é comum em outros casos de abuso sexual, a palavra da vítima é reforçada pela de outras vítimas. Me parece bem nítido que ele era um abusador contumaz. A palavra de uma vítima fortalece e reforma a palavra de outra”, argumenta. “Uma coisa seria apenas uma pessoa isolada falar, até poderia se questionar, mas centenas dizendo mostra que era uma conduta reiterada”.

 

Alerta para a idolatria
Estudioso da doutrina Espírita, o psicanalista André Marouço alerta para a questão da idolatria de líderes espirituais. “Todas as pessoas que entram neste campo da idolatria entram num estágio de hipnose tão grande que perdem a força de impedir que tais abusos ocorram. É necessário que interrompamos essa idolatria urgentemente”, adverte.

“É um médium de cura, mas é uma criatura humana encarnada, passível de provas e expiações. E de erros”, afirmou, em entrevista à TV Mundo Maior (disponível no Youtube). “Seres humanos são falíveis. Ateus, agnósticos, espíritas, católicos, evangélicos…”

João leva Deus no nome mas não é Ele.