Comportamento

Quando o problema é a fé alheia

19/01/2019

Crianças atingidas por pedras ao retornarem de cultos de Candomblé, mulheres agredidas verbalmente nas ruas por cobrirem os cabelos com véus, imagens de santos destruídas, terreiros incendiados. Os casos de discriminação e crimes de ódio motivados por intolerância crescem todos os anos em nosso país, ainda que a legislação brasileira proteja a liberdade religiosa.

 

Neste domingo (20) se comemora o Dia da Religião. Não por acaso, o dia seguinte, 21 de janeiro, é marcado pelo Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Neste fim de semana, o Movimento Inter-religioso pela Cidadania de Santos organiza um ato para fortalecer a harmonia entre as comunidades  das mais diversas crenças. 

 

O simples fato de ser necessário separar uma data para lembrar  que é importante respeitar o próximo – e que o Estado Brasileiro é laico – já demonstra que o problema está longe do fim. Afinal, se todos os caminhos levam a uma mesma energia superior, por que somos tão intolerantes com a religião do outro?

 

De onde vem a intolerância? 


A tela Tochas de Nero (1876), de Henryk Siemiradzki, mostra cristãos sendo usados como tochas humanas, na perseguição sob as ordens Nero

 

A questão é complexa, pois a História nos mostra que a intolerância religiosa é um fenômeno tão antigo quanto a própria religião. Os primeiros cristãos foram duramente perseguidos durante o Império Romano. Anos após a morte de Jesus, foram os cristãos que passaram a perseguir os judeus. Na Segunda Guerra Mundial, o ódio religioso atingiu níveis nunca vistos antes, quando os nazistas perseguiram milhões de judeus e outros grupos indesejados ao regime. No século XXI, as religiões islâmicas são as mais rechaçadas ao redor do mundo.

 

O Brasil tem o seu próprio monstro para lidar. A religião cristã foi implantada com a colonização portuguesa, que a decretou como oficial, impedindo e condenando outras manifestações religiosas.  Os credos indígenas e africanos eram punidos e proibidos, gerando os primeiros registros de intolerância religiosa no país. Por esse motivo, os adeptos dessas religiões encontraram formas de “burlar” a religião oficial e passaram a adotar os santos católicos em seus cultos. São Jorge se tornou a representação de Ogum, Nossa Senhora Aparecida, Oxum, e Santa Bárbara, Iansã, por exemplo.

 

Fundamentalismo religioso

A origem da palavra tolerância vem do latim tolerare e significa suportar, aceitar o que não se quer ou o que não se pode impedir. Intolerância é, portanto, não aceitar aquilo que destoa do que se deseja. No caso da religião, trata-se de um argumento generalizado entre aqueles que praticam uma crença e que são inflexíveis com os outros: “se a minha doutrina religiosa é verdadeira, é justo combater aqueles que defendem as falsas doutrinas”. Esta posição é considerada uma forma de fundamentalismo religioso.

 

As religiões maniqueístas, que pregam a luta do bem contra o mal, costumam condenar e considerar como pecaminosas todas as que divergem dos seus ensinamentos. Grande parte dessas religiões reforça a visão pejorativa de outros credos para perpetuar a sua crença.

 

Religiões que cultuam incorporações – como a Umbanda, Candomblé, Espiritismo – são as que mais sofrem, pois essas práticas são consideradas como “manifestações do mal” pelos intolerantes.  

 

À frente de uma Casa de Umbanda, Mãe Silvana acredita que a desinformação e a cultura do país com religiões impregnadas há séculos refletem a situação. “Pode-se, por exemplo, cantar louvores e fazer pregações, mas se chego com uma guia (instrumento de trabalho) no pescoço ou cantando ponto de Orixá, vai ser diferente”.

 

A umbandista reforça sobre a aceitação de cada um cultuar e chamar pelo seu Deus da forma que preferir. “Não vamos impor a ninguém que nossos Orixás são os melhores. O que para uns é Jeová, para nós é Olorum, o que para outros é Jesus, para nós é Oxalá”.

 

Segundo a psicóloga Bruna Rosa, o ego é a razão de ser tão difícil aceitar a crença do outro. “A polarização torna todas as alternativas ou como certas ou como erradas. Você se apega a sua escolha até o fim e admitir que aquilo possa não ser uma verdade absoluta é inadmissível, porque ameaça a certeza das nossas escolhas e a sociedade não nos permite errar. Dizer que o outro está errado mantém a pessoa inserida em um grupo que pensa da mesma forma, o que torna a situação mais fácil”. 

 

Mudar esse comportamento é difícil, mas não impossível. “Precisamos entender que a vida é muito mais do que esse sim ou não. Nem sempre o melhor para você é o melhor para o outro, então, olhar com empatia, bom senso e respeito é imprescindível”.  

 

Formas sutis de preconceito 


Foto: Reprodução

 

O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi instituído em memória ao dia da morte de Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, na Bahia, vítima de intolerância religiosa. Esta tragédia não é um caso isolado. O problema tem início com formas sutis de preconceito. Muitas tão arraigadas em nossa cultura, que reproduzimos no dia a dia, sem perceber, como chamar alguém de ‘macumbeiro’ ou dizer ‘chuta, que é macumba’. 

 

Em Santos, a yalorixá Denise de Sobá já foi alvo de insulto por entrar em um transporte público com as roupas que usa no terreiro de Candomblé. “A pessoa do meu lado se levantou e na hora de descer falou que o Satanás estava andando de ônibus”. Na época, não existiam leis que punissem essas práticas no Brasil.

 

E não precisa estar fora do local de culto para que as formas de inibição ocorram. Mãe Beth relembra de quando demorou quase dois meses para conseguir um pedreiro que aceitasse reformar o seu barracão. “Quando viam que era um terreiro uns iam embora, outros perguntavam por que não avisei. Chegaram até a falar que não pagamos e depois fazemos trabalho para a pessoa adoecer”.

 

Educação para enfrentar
A educação e conscientização são as principais formas de combate à intolerância religiosa, para a advogada e professora Patrícia Gorisch, cuja atuação é voltada à promoção dos Direitos Humanos. 

 

“É importante nas escolas abordar a questão filosófica da religião, pois todas elas têm o mesmo liame, que é o encontro com Deus. A partir do momento em que a pessoa vê que o outro tem uma religião que tem o sentido de ligação com deus, ela vai começar a perceber que é uma questão de identidade. No final das coisas, a gente fala a mesma coisa, só que de outras formas”. 

 

A especialista lembra que a liberdade religiosa é protegida pela Constituição Federal e que, apesar de o Estado Brasileiro ser laico, ele não é laicista. “No preâmbulo da Constituição Federal fala-se em Deus”, explica. 

 

Comunidades religiosas pela paz 


Foto: Martina Flores Fotografia

 

Para fortalecer o respeito entre as religiões, representantes de diferentes crenças se reúnem neste domingo (20), a partir das 18h, em frente ao Aquário de Santos (Ponta da Praia) para celebrar o Dia Mundial da Religião. 

 

O coordenador do Movimento Inter-Religioso Pela Cidadania, José de Abreu, explica que será um encontro para irmanar as religiões. “Vamos mostrar para a sociedade que nós convivemos harmoniosamente. Se todas as religiões estarão ali reunidas, onde está a intolerância?”, questiona. 

 

Na ocasião, Patrícia Gorisch ministrará palestra sobre religião e cultura de paz. “Vamos falar de religião como um caminho da paz, sobre preconceito e, principalmente, sobre refugiados. Um dos motivos para se considerar uma pessoa como refugiada é a fuga de seu país por perseguição religiosa”, explica. O ato contará ainda com a apresentação do grupo cigano Tsara Romai.