Baixada Santista

Problema do tamanho do Maracanã

02/02/2019

No começo da segunda metade do século passado, diversas empresas se instalaram no polo industrial de Cubatão. Eram fábricas obsoletas em seus países de origem, que praticamente foram desmontadas e remontadas na cidade da Baixada Santista. Além da abundante fonte de água, a proximidade da capital paulista e do porto, também atraiu estas multinacionais a quase que completa ausência de uma legislação de preservação ambiental. 

Durante décadas, estas indústrias despejaram milhões de toneladas de rejeitos químicos, contaminando o ar, a água, o solo, a vegetação e as pessoas. Chuva ácida que derretia a pintura de carros, centenas de trabalhadores doentes, crianças nascendo sem cérebro. A situação só foi interrompida em 1992, quando um amplo plano foi colocado em prática e conseguiu controlar 98% das emissões de poluentes. E, em 2011, chegou-se aos 100%.

Material tóxico
Mas alguns rejeitos não foram eliminados. O leito do Canal de Piaçaguera recebeu durante décadas detritos de várias indústrias, principalmente a então Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), que após privatizada passou a se chamar Usiminas. No fundo deste local, que é berço de diversas espécies marinhas (muitas que vão parar no prato da população), estão depositados metais pesados e outras substâncias altamente tóxicas. “Podem provocar câncer e problemas neurológicos. Possuem agentes mutagênicos, isto é, causam deformação de fetos”, alerta a bióloga e oceanógrafa Silvia Maria Sartor, da Universidade de São Paulo. 

Toda esta história triste voltou à tona após a tragédia em Brumadinho, onde centenas de pessoas morreram após o rompimento de uma barragem da mineradora Vale. Acontece que uma empresa, a Valor Logística Integrada (VLI), que tem entre os sócios a mesma Vale, promoveu a retirada de lama contaminada do fundo do Canal de Piaçaguara, para aumentar a profundidade no local e permitir a navegação de navios maiores — os chamados Panamax. 

 

Clam shell X rooter
 A VLI se orgulha em divulgar que desenvolveu um método que não traz danos ao meio ambiente: abriu um enorme buraco no fundo do canal, com 25 metros de profundidade e 400 metros de diâmetro (maior que o estádio do Maracanã) e nele depositou toda a lama contaminada —cerca de 2,4 milhões de toneladas. Segundo a empresa, a dragagem é diferente da convencional. Enquanto o normal é o material ser retirado por gigantescas pás (clam shell), nesta dragagem ambiental os rejeitos são “aspirados” e depois “injetados” na cova submarina.

Apesar de ter sido aprovada pela Cetesb e ter o apoio da Prefeitura de Cubatão, este método, denominado Cava Subaquática, vem sendo fortemente questionado por pesquisadores, ambientalistas, professores universitários, os Ministérios Públicos Federal e Estadual, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e 0parlamentares. Entre as acusações, está a de que a solução foi escolhida por ser a mais barata e rápida e, justamente por conta disso, coloca em sérios riscos o meio ambiente e a saúde das pessoas. 

 

Risco de contaminação
Não é que haverá um rompimento como o de Brumadinho ou Mariana. O risco é outro, afirma o professor universitário Elio Lopes. “Essa operação de dragagem provoca a solubilização dos poluentes, disponibilizando-os ao ecossistema”, explica. ”Não é o mais moderno, mas é o mais barato e mais rápido”, completa o diretor da Associação de Combate a Poluentes, Jeffer Castelo Branco, que é mestre em Ciências Ambientais e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo eles, o melhor procedimento seria acondicionar o material em bags (sacos) impermeáveis e depositá-los em um terreno (não submerso), e mantê-lo sob monitoramento.

O geólogo e professor do Instituto Oceanógrafo da USP, Michel Mahiques, reforça: “Em vez de numa cava, o material deveria ser depositado em um aterro industrial, onde o sedimento pudesse ser tratado. A despeito de quantidade, o importante é que se trata de material altamente contaminado”. 

O Ministério Público Federal entrou na Justiça contra a Cetesb e a empresa, questionando a licença ambiental para a operação, mas a ação foi negada. “Foi feito um estudo para retirada de 12 metros de sedimento, mas foram retirados 15 metros. E como foi preciso retirar mais material, e a opção mais segura apontada no estudo não era a cava, mas em terra, em Unidades de Disposição Confinada, com monitoramento”, diz o procurador Antônio José Daloia. 

Os pesquisadores também questionam o monitoramento feito pela Cetesb, pois há suspeita de que boa parte da dragagem foi feita pelo método convencional (clam shell) e não pelo ambiental (rooter). No dia em que uma equipe da TV Cultura fez imagens aéreas da operação, foi flagrada a dragagem convencional, e não ambiental. A empresa afirma que foi uma “situação excepcional” e autorizada pela Cetesb.

Foto: Reprodução/TV Cultura

Empresa garante que local está livre de rejeitos químicos

O gerente geral de Operações Portuárias da VLI, Alessandro Gama, garante que a cava subaquática foi a opção mais segura e afirma que o fundo do Canal de Piaçaguera está livre de rejeitos químicos. 

“A gente não tirou da cartola, trouxemos consultorias internacionais. A opção da cava se mostrou mais segura por ser mais rápido, pois se consegue confinar o material próximo ao local de retirada. A gente não pensou em custo. Se fosse dragar o canal apenas para navegação, ficaríamos em 13,3 metros. Mas o compromisso que a gente assumiu com o órgão ambiental foi limpar o canal, por isso que chegamos a até 14,5 metros. A gente dragou mais,  porque o objetivo era limpar o canal”, declara. 

O representante da VLI nega que a dragagem tradicional tenha predominado no serviço. “A gente só usou a clam shell (pás gigantes) no final da dragagem. A Cesteb autorizou porque o local onde foi dragado tinha uma quantidade muito menor de material contaminado. Foi uma situação excpecional, mas foi autorizada pelo órgão ambiental. Cerca de 98% do material, 2,3 milhões de metros cúbicos, foi dragado pelo método rooter”, garante. 

Licença ambiental
Gama nega que o trabalho foi feito em desacordo com o licenciamento ambiental. “A Cetesb se posicionou em relação a isso. Tem licença de projeto, de implantação e de operação. São diversas etapas, ao longo delas, até que se receba a licença de operação, ocorrem uma série de modificações, atendendo requisitos do órgão ambiental. Estar diferente não significa estar pior do que foi proposto inicialmente. Hoje, tem uma condição muito mais restritiva do que tinha na proposta inicial. O grande risco que a gente tem quando faz dragagem de material contaminado é, na hora que está retirando, é ele se dispersar ou ficar em suspensão. Foi utilizada a dragagem do tipo rooter, por sucção, na melhor velocidade possível, para evitar a dispersão do material. A draga tinha capacidade para retirar 2 milhões de metros cúbicos por mês, mas operou só 500 mil, para aumentar a segurança”. 

 

Sem contaminação
O representante da empresa contesta os ambientalistas contrários ao projeto. “Infelizmente, muitas pessoas que estão se pronunciando contra a cava têm muito conhecimento sobre o sedimento, mas as disciplinas envolvidas neste projeto vão muito além de simplesmente o conhecimento químico do material”, afirma. 

Segundo ele, não há possibilidade de contaminação do ecossistema estuarino. “Quando se tira esse material depositado ao longo de 4,7 quilômetros do canal e coloca numa área de 400 metros de diâmetro, se reduz sobremaneira a área sob efeito das marés. A gente vai cobrir com material bom essa área de 400 metros e, com o tempo, ela vai acabar sendo sobreposta com sedimento da variação de maré. O Canal de Piaçaguera tem um assoreamento natural de 300 mil metros cúbicos por ano”, explica.

 

Aprofundamento
O executivo informa que antes da dragagem, a profundidade no local era de 9,8 metros. “Nós dragamos até 13,3 metros na primeira etapa e na última chegamos a 14,5 metros em média, existam pontos com 13,5 e outros com 15 metros. Na última etapa foi mais cirúrgico, nos pontos onde havia ainda um resquício de material com contaminação”. Ele revela que o projeto teve um custo de R$ 400 milhões. 

 

Impacto de vizinhança 
Gama acrescenta que a comparação da cava com barragens é descabida. “A parede da cava é o subsolo do leito do canal, ela está enterrada. Ela tem água dentro e água fora, isto é, você tem equivalência de pressão, a integridade da cava está segura. Não tem perigo de transbordo, nem pressão interna para romper parede de cava”, afirma. 

O diretor da VLI assegura que foi feito Estudo de Impacto de Vizinhança e garante que o local escolhido para cavar a cratera não inviabiliza qualquer projeto portuário. “Temos estudos que demonstram isso. E qualquer outro empreendimento que se instalar ali vai se beneficiar da limpeza que a gente fez”, completa.