Comportamento

A força do pensamento

04/05/2019

Milhares de anos atrás, homens acorrentados pelos pulsos, tornozelos e pescoços dentro de uma caverna só tinham a visão das próprias sombras, projetadas pelas chamas de uma fogueira. Achavam que o mundo era aquilo. Até que certo dia um deles conseguiu se libertar e foi para fora da caverna. Viu o céu, o sol, árvores, animais, rochas, sentiu o vento, a chuva… Voltou para dentro da caverna e contou aos companheiros de grilhões tudo o que tinha presenciado. Ninguém acreditou. 

 

O relato é um resumo (um tanto tosco) do Mito da Caverna, uma das reflexões mais emblemáticas de “A República”, do filósofo grego Platão (427AC-347DC). É uma das ideias mais debatidas da história da humanidade, na medida em que propõe reflexões sobre a diferença entre senso comum e senso crítico. São conceitos que dizem respeito à capacidade de reflexão, formulações abstratas, interpretação de realidades…

 

A força do pensamento
Ajudar a pessoa a desenvolver o próprio pensamento é uma das principais missões das chamadas ciências humanas (filosofia, sociologia, antropologia, teoria política), que nos últimos anos vem sendo demonizadas sob a justificativa de que estas disciplinas buscam “disseminar o comunismo e ideias de esquerda”. O golpe mais recente foi dado pelo presidente Jair Bolsonaro, que anunciou a redução de recursos para cursos de Humanas e priorizar faculdades que “geram retorno de fato”, como “enfermagem, veterinária, engenharia e medicina”. É mais uma  manifestação de um grupo específico da sociedade que defende ideias absurdas como a de que vacinas fazem mal, o planeta terra é plano, o fascismo é de esquerda… 

 

A utilidade das Humanas
A grande dificuldade de quem desmerece o valor dos conhecimentos das ciências humanas é não entender que elas não geram resultados palpáveis (a produção de uma cadeira, a construção de uma ponte) e sim em níveis abstratos. Raciocínio, lógica, reflexão, crítica, o significado de ética, a situação do ser humano em relação às outras coisas, as diferenças culturais, as regras simbólicas que regem as relações humanas, os motivos pelos quais levam as pessoas a fazerem o que fazem. 

 

Os fundamentos teóricos presentes em disciplinas como Filosofia, Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Geografia, História e Psicologia ajudam a pessoa a perceber melhor a complexidade do mundo, prevenindo-as de abraçar Fake News, preconceitos e crendices.

 

As ciências humanas não comportam verdades absolutas, diferente de outras disciplinas. Basta lembrar das fórmulas matemáticas, as leis que regem as reações químicas e físicas, as características biológicas de cada ser… 

 

Além disso, os fundamentos “de humanas” são aplicados em outras áreas do conhecimento, como o Direito, a Comunicação e até mesmo Astronomia. As ciências humanas têm a capacidade de, baseadas nas reflexões feitas pelos pensadores do passado, ajudar cada um a desenvolver um roteiro próprio para organizar seu pensamento — seja ele qual for. 

 

Cursos “de esquerda”
A crítica mais ácida aos cursos de ciências humanas é a de que teriam se tornado verdadeiros redutos de esquerdistas. Ela em parte é verdade, pois muitos diretórios e centros acadêmicos praticamente se tornaram diretórios de partidos políticos —principalmente PT, PCdoB e PSOL. Além disso, muitos mestres e doutores realmente têm mais afinidades com ideologias e lideranças mais à esquerda. No entanto, imaginar que seja possível “doutrinar” estudantes “ingênuos e indefesos” é um grande exagero. 

 

Outro problema é a tentativa de enquadrar formulações filosóficas complexas de autores seculares nos rótulos singelos de “direita” e “esquerda”, como Platão, Maquiavel, Descartes, Adam Smith, Thomas Hobbes, Nietzsche e Hannah Arendt.

 

Há quem argumente que os pensamentos conservadores, mais “à direita” perderam espaço no meio acadêmico brasileiro como consequência da ditadura militar. Na década de 1960, em plena Guerra Fria, havia, sim, um cenário de polarização mundial entre capitalistas e comunistas e este conflito se materializou também no Brasil. Os simpáticos às ideias conservadoras, aliados de primeira hora dos golpistas, acabaram indo “para dentro do armário” ideológico, com receio de ficarem associados a um regime marcado pela truculência e caça às liberdades.

 

Apenas recentemente os defensores de ideias “liberais na economia e conservador nos costumes’ passaram a ficar mais à vontade para defenderem seus posicionamentos a admitirem-se “de direita”. Inclusive no próprio meio universitário —e em faculdades “de humanas”.

 

A nível mundial, a prova definitiva de que intelectuais “de esquerda” não dominam o monopólio do saber é a grande quantidade de prêmios Nobel conferidos a pensadores “de direita”.

 

Um demônio chamado Paulo Freire
Uma das principais referências entre os estudiosos da pedagogia no mundo, o educador Paulo Freire vem sendo satanizado por críticos das ideologias mais à esquerda — equivocadamente. 

 

O método de Paulo Freire não é unanimidade entre os especialistas no assunto, mas ele é o terceiro autor mais citado em obras acadêmicas da área de humanas no mundo —supera até os filósofos Michel Foucault e Karl Marx. 

 

Diferente do que propagam seus críticos, o “método Paulo Freire” de alfabetização, que seria a raiz da péssima qualidade do ensino público brasileiro, nunca foi implantado em nível nacional. Ao contrário: foi uma experiência isolada e com resultados surpreendentes. Desenvolvendo a  Pedagogia do Oprimido, na pequena cidade de Angicos (Rio Grande do Norte), Paulo Freire conseguiu alfabetizar 300 cortadores de cana em apenas 45 dias, em 1963. A ideia central do método era ensinar a ler e escrever usando palavras e situações familiares à vida daquelas pessoas. 

 

Nos anos seguintes, Paulo Freire foi demonizado pela ditadura militar, pois seu método, se implantando nacionalmente, habilitava milhões de pessoas para votar. Acusado de “subversão”, ficou preso por 71 dias e em seguida expulso do país. No exterior, lecionou na Universidade de Harvard, fez consultorias em diversos países europeus e desenvolveu trabalhos de alfabetização na África. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa de 27 universidades e os prêmios Educação para a Paz (das Nações Unidas, 1986) e Educador dos Continentes (da Organização dos Estados Americanos, 1992). 

 

O método de Paulo Freire não foi implantado no Brasil mas serviu de inspiração para as políticas educacionais adotadas na Finlândia e Coreia do Sul, países que vem obtendo excelentes resultados no segmento.

 

Em relação à suspeita de que promoveria uma “doutrinação” de jovens, uma frase do próprio Freire: “não me repita, mas se considerar que alguma ideia minha resolve algum problema da realidade, reinvente essa ideia em cada contexto”.

 

Foto: Shutterstock