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Resenha da semana: O Irlandês

16/11/2019

É interessante como os serviços de streaming, no caso aqui a Netflix, proporcionam mais liberdade criativa aos artistas que querem arriscar em suas obras, porém não conseguem ser financiados por grandes estúdios por medo de fracassarem na bilheteria. Tenho certeza que, mesmo o grande Martin Scorsese (talvez um dos maiores diretores vivos atualmente), teria problemas ao viabilizar este projeto devido ao seu alto custo. O filme teve um orçamento na casa dos 175 milhões de dólares, muito devido a tecnologia de rejuvenescimento digital, onde permitiu que Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci interpretassem versões de seus personagens durante quatro décadas. Para deleite dos cinéfilos de todo mundo, finalmente temos reunidos em um épico filme de máfia, essas três lendas vivas e ainda mais, sendo comandadas pelo lendário Martin Scorsese. O cinema agradece.

 

No filme, conhecido como "O Irlandês", Frank Sheeran (Robert De Niro) é um veterano de guerra cheio de condecorações que concilia a vida de caminhoneiro com a de assassino de aluguel número um da máfia. Promovido a líder sindical, ele torna-se o principal suspeito quando o mais famoso ex-presidente da associação desaparece misteriosamente. Scorsese dispensa apresentações e, mesmo com quase 80 anos, demonstra a mesma energia e vitalidade de quando comandou obras como Os Bons Companheiros, porém aqui mais carregada no peso que a violência tem na vida de um homem. Trabalhando em um terreno que lhe é bastante familiar, os filmes de máfia, Scorsese aborda uma nova perspectiva aqui: a do isolamento causado por uma vida dedicada a outras pessoas. Conduzindo o filme sem pressa (ele tem quase 3h30 de duração), mas mesmo assim sem jamais ser cansativo, Scorsese segue perfeitamente sua cartilha: narração em primeira pessoa, a quebra da quarta parede, humor peculiar aliado com uma tensão crescente em diálogos, uma direção que faz com que a câmera nunca pare, onde percorre lentamente todo o ambiente, fazendo com que o espectador capte todos os detalhes da cena e claro, a nostalgia e vibração de ver a trinca de seus protagonistas serem desenvolvidos minuciosamente pelo roteiro de Steve Zaillian.

 

Este longo roteiro, ajuda a delinear cada etapa da vida dos três personagens e faz com que o público observe realmente uma vida inteira através das décadas, sem precisar mostrar em que ano estamos. Extremamente melancólico em sua abordagem, o roteiro está interessado em abordar um retrato minucioso da vida no crime e de como o tempo consome tudo, não deixando nada além de arrependimento e mágoa.

 

Algumas cenas aliadas a precisa direção de Scorsese entrarão para o hall de melhores do diretor, como a sufocante e longa sequência que culminou no desaparecimento de Jimmy Hoffa. 

 

No quesito técnico, tudo é perfeito e seria interessante destacar o trabalho de montagem de Thelma Schoonmaker, parceira de longa data de Scorsese, que nos puxa para dentro daquele mundo sórdido e cheio de violência , costurando todos os eventos de forma orgânica a narrativa, demonstrando um evidente domínio narrativo em cada minuto do filme. Responsável pela bela fotografia, Rodrigo Prieto contribui para a realista atmosfera do filme sem firulas estilísticas, demonstrando como a concepção visual do filme foi cuidadosamente planejada para andar de mãos dadas com a proposta geral do diretor. Outro ponto a destacar é a trilha sonora, que é tensa e melancólica na medida certa.

 

E tudo isso nos leva a reunião de três dos maiores e brilhantes atores que marcaram uma geração, com diversos clássicos que preenchem a prateleira de todo o cinéfilo. Robert De Niro entrega uma performance digna de sua história, compondo seu personagem na sutileza de expressões e olhares, que diz muito o que se passa em sua mente. E se gostei demais da interpretação de Joe Pesci, como um educado e filosófico mafioso que é a cabeça por trás das decisões sobre quem vive ou quem morre, é Al Pacino quem consegue roubar o filme. O ator está mais do que a vontade encarnando uma figura icônica da vida real que casa perfeitamente com suas já clássicas explosões de descontrole, onde grita na reprodução de seus diálogos e que por vezes, utiliza de longas pausas enquanto parece estar a procura de uma palavra.

 

O Irlandês mostra Scorsese em total sintonia com sua própria essência em seu grandioso e melancólico épico de máfia, onde demonstra uma destreza e disposição de dar inveja, aliado a experiência que só vem com o tempo, entregando ao público um de seus melhores filmes em anos e uma reunião de atores que desde já, é um marco no Cinema. 

 

Curiosidades: Baseado no livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, escrito a partir de relatos do próprio Frank.
 

 

Foto Divulgação/Netflix