Gente que faz

De perto ninguém é normal

28/09/2019
De perto ninguém é normal | Jornal da Orla

Em 1989 a cidade de Santos assumiu a vanguarda da luta antimanicomial no país com a intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta, a chamada ‘Casa dos Horrores’. Nesse mesmo ano surgia o projeto Tamtam, idealizado pelo arte-educador Renato Di Renzo e voltado à inclusão social de pacientes psiquiátricos por meio da arte e da cultura. Foi nesse cenário que uma estudante de psicologia descobriu uma vocação que moldou e mudou sua vida para melhor – e em definitivo.

 

Bailarina por formação, a jovem Cláudia Regina Alonso cursava o último ano de psicologia e aproveitou sua experiência na dança e no estágio feito em uma maternidade para elaborar seu TCC sobre terapias corporais. Com a tese embaixo do braço, bateu às portas da Secretaria Municipal da Saúde, comandada na época por David Capistrano Filho. “Para mim, a cabeça não se separa do corpo”, disse ela, frase que conquistou Capistrano.

 

Encaminhada ao projeto, as surpresas foram muitas. “Esperava encontrar um hospício tradicional, mas logo deparei com uma parede pintada, salas sem portas, gente trabalhando com argila, pintando. Eu não sabia quem era paciente e quem era técnico. Pensei que ia atuar como psicóloga, mas o Renato estava interessado na dança. Eu sabia dar aula de dança tradicional, não para pessoas com necessidades especiais, ai o Renato disse “Faça”. Nada substitui o ato”. Começava ali uma parceria de quase três décadas do Tamtam com o grupo de dança Orgone, criado pela bailarina.

 

Hoje, Claudia Alonso defini o projeto Tamtam como sua grande tábua de salvação. “O ser humano que sou é devido à experiência no Tamtam. A criança e a pessoa com deficiência são espontâneas, nos tira da situação de conforto. O Tamtam é um espaço de aprendizagem de vida, aberto para todos, não só para quem apresenta distúrbios mentais”, explica.

 

Passional e racional
Aos 51 anos, Cláudia se define como passional e, também, racional. “Se ser passional é ser apaixonada, então eu sou passional, mas sou racional. A maturidade dá isto, a vida dá a necessidade de ser racional. Precisamos ser exageradamente humanos, exercitar isto, que não se quantifica, não se paga, é o que potencializa a vida”, pondera.

 

Para ela, mais do que nunca estamos precisando reavaliar a postura de vida, pois a sociedade está adoecida. “Vivemos um momento muito difícil para a humanidade, de intolerância do homem com ele mesmo. As pessoas perderam a capacidade de se olhar, se cuidar, se abraçar, se relacionar. É um problema de saúde mental coletiva”.

 

Energia vital 
Quando cursava psicologia, Cláudia foi apresentada à obra de Wilhelm Reich (1897-1957), psicanalista austríaco autor de “A Descoberta do Orgon”, uma energia vital que estaria estagnada em alguma parte do corpo, causando a enfermidade local. 

 

Para Cláudia, tudo ficou claro. “A gente vai criando couraças ao longo da vida, que se manifestam em dores no corpo. É um sistema muito perverso, que nos deixa dependentes de remédios. Viramos uma cebola cheia de camadas que, quando descascadas, provocam lágrimas, embora a comida fique boa”, eufemiza. A teoria de Reich inspirou o nome de seu grupo de dança – Orgone.

 

30 anos do Tamtam
Apesar da conotação pejorativa na linguagem popular, a palavra Tamtam significa “instrumento de percussão que ecoa por todos os lados”. E este foi o motivo de ter sido escolhida pelos próprios pacientes para nomear o projeto na época. É um trabalho pioneiro de acessibilidade à arte e à cultura que conquistou prêmios e reconhecimento internacional.

 

A ong Tamtam, que completa este ano três décadas de existência, não tem convênio público e conta com o trabalho de voluntários. Atualmente, atende 196 pessoas gratuitamente em várias atividades. Funciona no Espaço Café Teatro Rolidei, na avenida Pinheiro Machado, 48, 3º piso (prédio do Teatro Municipal). Para saber mais acesse www.tamtam.art.br.

 

Contra cultura da pena
Claudia não compactua com o que chama de “cultura da pena”. “Inclusão é sociedade para todos e com todos. O ser humano tem suas habilidades, então é preciso buscar igualdade de oportunidades para pessoas diferentes. Cada qual do seu tamanho e têm alguns que precisam tomar remédio, são os crônicos. Não é para ter pena, pois isto cria um círculo vicioso”.

 

Cláudia conta que é revigorante estar junto com seus alunos. “Eles me dão muito carinho, se mostram dispostos a aprender, são interessados, participativos. Além do que, trabalhar com o Renato é difícil e é muito bom, porque ele é muito plural, com ele não tem nada engessado”. Ela mesma aprendeu Libras (linguagem de sinais) para se comunicar com maior clareza. Sua melhor aluna de dança é deficiente auditiva. 

 

Crença no ser humano
“Cada um sabe o tamanho da sua dor, temos fases na vida”, afirma Cláudia, que viveu um período de depressão e precisou de remédios para superar. “Tinha dificuldade de falar não, ai entendi que é preciso ter um pouco de egoísmo saudável”.

 

Como psicóloga da Secretaria de Desenvolvimento Social, Claudia se uniu ao presidente da Capep, Adriano Leocádio, para levar aos servidores municipais o projeto Circula Ações, um trabalho de escuta e, se necessário, encaminhamento.

 

“Continuo acreditando no ser humano, acima de tudo. Somos nossa salvação, precisamos fortalecer o afeto, o colorido da vida, potencializar as ondas de energias, falar de coisas boas”, aposta.

 

Foto: Arquivo Pessoal