Gente que faz

Um mestre na vida

23/11/2019
Um mestre na vida | Jornal da Orla

Educador físico e mestre de capoeira, José Cícero França da Silva, o Cícero Tatu, viu sua vida se transformar ao mergulhar no universo das pessoas especiais. Hoje, junto com a satisfação de ser professor, Cícero é agradecido às centenas de crianças e jovens com deficiências físicas ou mentais que, com atitudes simples e espontâneas, foram mostrando o caminho para que se tornasse um ser humano melhor.

“A primeira modificação visível ocorreu em mim. Fui melhorando como pessoa. Mais tolerante, respeitando e compreendendo o tempo do outro, o que é um exercício difícil, recolhendo muitas histórias familiares. Digo para minha mulher que nós não temos problemas, temos contratempos que vamos resolver”, diz o mestre capoeirista de 58 anos, casado com Carla e pai de quatro filhos – o mais velho, Filipe, já segue seus passos como professor de educação física.

Cícero Tatu especializou-se em esporte adaptado e de inclusão social. Tudo começou meio que por acaso, mas ele acredita que estava predestinado ao que considera uma missão em sua vida. Na juventude chegou a cursar dois anos de engenharia elétrica para atender o gosto do pai, mas seu coração pulsava por outra área e em 1982 formou-se em educação física. “Fui até onde aguentei, ia ser um péssimo engenheiro”, brinca.

Começou trabalhando na Casa da Esperança, instituição filantrópica que assiste pessoas com deficiências, mas logo migrou para o ambiente fitness. Somente em 1995, já como professor concursado da Prefeitura de Santos, teve seu primeiro contato com o esporte adaptado. “Meu destino não foi trocado, mas interrompido. Desviei do caminho, ganhei maturidade e voltei. Não era a época”, acredita.

 

A descoberta

Funcionário concursado da Prefeitura de Guarujá desde 1990, cinco anos depois Cícero também foi aprovado em concurso em Santos, sendo  designado para dar aula de capoeira no Posto 2, onde funciona a Escolinha de Surfe, a primeira do país. Foi quando apareceu Wladimir, um jovem deficiente visual que queria aprender a dominar as ondas.

Como auxiliar do professor Cisco, Cícero pensou em usar os movimentos da capoeira como suporte para melhorar o equilíbrio e a percepção na prancha. E deu certo. “O Wladimir foi me ajudando, orientando. Ele foi muito importante para que eu me apaixonasse pela inclusão”.

A partir daí foram chegando alunos encaminhados por instituições. “No início as mães nem perguntavam sobre matrícula com medo da rejeição. Hoje têm leis, conquistas, a Prefeitura de Santos mantém uma seção especializada”, conta o mestre, atualmente chefe da SESPAD, Seção de Esportes Adaptados da Secretaria Municipal de Esportes, que oferece aulas de basquete, futsal, capoeira, natação, ciclismo, musculação, hidroginástica e surfe.

 

Seres pra lá de especiais

Dividir o dia a dia com pessoas com deficiências múltiplas, muitas vezes marginalizadas no convívio social, trouxe vários ensinamentos. “Tenho absoluta certeza de que é minha missão”, diz Cícero, seguidor da doutrina espírita.

Ele destaca a sinceridade e o jeito carinhoso de seus alunos. “Tudo é muito espontâneo. Eles fixam no amor, quando a pessoa dita normal aprende mais na dor. As deficiências deles simplesmente foram rotuladas, enquanto os “normais” usam uma capa de proteção, procuram não mostrar suas próprias deficiências”, conclui Cícero.

Ele faz uma advertência: “Teimamos em infantilizá-los, subestimá-los.  Não conseguimos dimensionar até onde estão entendendo. Um deles se queixou que a vizinha o chamou de especial e me disse: “as outras pessoas acham que a gente não sabe nada, mas eu sei.”. Daí a importância do elogio, do estímulo, de elevar sua autoestima”, aconselha. 

Segundo ele, além da melhora na socialização e no comportamento em casa, a prática de esporte reflete positivamente nas condições físicas dos portadores de deficiências. “Melhora a marcha, o equilíbrio, a fala. A disciplina não precisa ser engessada, ríspida. Há diferença entre medo e respeito. Eles atendem pelo respeito e por gostar de mim”.

 

Empenho e dedicação

Cícero Tatu faz questão de destacar a dedicação das mães. “Em 90% dos casos são as mães que cuidam, vêm na chuva e no sol, às vezes de longe. Tenho um respeito enorme por essas guerreiras, elas têm consciência que é uma missão, um resgate dos dois”, diz Cícero.

O empenho dos alunos é outro exemplo de vida. “A adaptação visa à inclusão, mas eles se apegam tanto à aula e ao professor que não querem ir para o convencional. São turmas acolhedoras, divertidas. O intuito do trabalho é a inclusão, mas está ocorrendo uma inclusão inversa, nós estamos aceitando pessoas ditas normais”, diverte-se. Quanto à tarefa de ensinar, o mestre lembra que é preciso cuidado para não ser tomado pela vaidade. “Somos instrumento para que ocorra a superação, mas o mérito é do aluno, não do professor”. 

 

Ao som do berimbau

A beleza plástica dos movimentos e a musicalidade do berimbau, do pandeiro e do atabaque encantam os praticantes de capoeira, uma arte que cresceu dentro de adversidade. “A essência da capoeira é a adaptação, ela possui dispositivos biomecânicos que se adaptam ao praticante, permitindo jogar com outra pessoa diferente. Por isso, considero um casamento perfeito para a inclusão”, garante Cícero Tatu, que é fundador do grupo de capoeira Aruanda, cujo carro-chefe é a inclusão. “Não me vejo fazendo outra coisa na vida”, diz, satisfeito com o destino que lhe foi reservado.

 

Fotos: Gabriel Soares