Comportamento

Abraço de Dráuzio revela como realmente somos

14/03/2020
Abraço de Dráuzio revela como realmente somos | Jornal da Orla

A cena de 28 segundos, parte de uma matéria de 13 minutos e 24 segundos do Fantástico exibido em 1º de março, provocou enormes reações e, em síntese, acabou revelando a essência de cada um de nós.
“Há quanto tempo você está sem receber nenhuma visita?”, perguntou o médico Dráuzio Varela, consagrado pelo trabalho feito em presídios, livros que escreveu e sua capacidade de falar sobre saúde em programas de TV e palestras.

 

Comovido com a situação da trans Suzy, que há cerca de oito anos não recebia uma visita na cadeia, Dráuzio deu um forte abraço fraterno nela. A cena também emocionou o Brasil inteiro – em três dias após a exibição do programa, Suzy recebeu 324 cartas carinhosas. 

 

A situação mudou completamente quando se revelou o crime que levou Suzy para trás das grades: homicídio triplamente qualificado e estupro de vulnerável. Ela foi condenada a 36 anos e oito meses de reclusão por violentar e matar por estrangulamento um menino de 9 anos.

 

Na internet e no mundo real, apareceram pessoas indignadas com a TV Globo, Dráuzio Varela, Suzy… Inversão de valores, falta de respeito com a família da vítima e sensacionalismo foram algumas das acusações feitas. “#DrauzioVarelaLixo”, espumavam os mais exaltados.

 

Como todo episódio polêmico, este também tem consequências didáticas e, entre os efeitos colaterais, acabou evidenciando como de fato as pessoas pensam —bem diferente do que tentam aparentar.

 

O foco da matéria
O objetivo da matéria foi mostrar que travestis e trans cumprem pena com homens, o que é ruim no processo de reabilitação. Ficam misturados aos outros presos, sofrem agressões morais, físicas e estupros. Segundo a Humans Right Watch, o índice de prevalência de HIV nos presídios é 42 vezes maior que fora. 82% dos travestis e trans presos têm o HIV. Os travestis e trans são infectados na prisão, pois fora se previnem com o uso de preservativo.

 

A solidão
Se travestis e trans que não cometeram crimes sofrem grande preconceito, inclusive dentro da própria família, imagine então os presos. Assim, são renegados, deixam de receber visitas e deixam de ter ajuda com questões práticas, como o acompanhamento do processo criminal. 90% deles estão presos por terem cometidos crimes de menor gravidade (roubos e furtos). As condenações por tráfico de drogas foram motivadas por venda de pequenas porções de entorpecentes, comércio feito na maior parte das vezes para financiar o próprio vício.

 

O personagem
A equipe do Fantástico acertou ao escolher o tema da matéria mas errou feio na escolha da entrevistada: por saber e omitir a informação ou por não procurar apurá-la. Provavelmente, Dráuzio Varela não teria agido diferente se soubesse o crime cometido por Suzy. 

 

Ateu declarado, o médico costuma manifestar posturas mais humanistas e cristãs do que muitas pessoas que se declaram religiosas e tementes a Jesus.

 

Compaixão seletiva
As reações raivosas evidenciam que impera uma espécie de “compaixão seletiva”. Muitas pessoas confundiram sentir empatia por uma pessoa em solidão com perdoar seus crimes. São coisas distintas. Cabe perguntar aos que se dizem religiosos: O que Jesus Cristo faria, naquela situação?  Daria um abraço na trans ou falaria: “você não, meu filho, você não merece”.

 

Mas e se tivesse sido o seu filho, teria essa compaixão? Pergunta difícil de responder mas o grande desafio para quem pretende seguir uma vida baseada em valores humanistas (fraternidade, solidariedade, generosidade, compaixão e empatia) é praticá-los de fato, e não apenas da boca para fora ou na postagem nas redes sociais.

 

Reforço de preconceitos
A grande consequência deste episódio é o risco de aumentar ainda mais o estigma junto à população de travestis e trans, que já sofre muito preconceito. Não só as que cometem crimes, mas todas, inclusive aquelas que, por exemplo, trabalham num salão de cabeleireiro. Neste sentido, a escolha de Suzy pela equipe do Fantástico, acaba reforçando o preconceito de que “toda travesti e trans é uma maníaca sexual, pedófila etc.”

 

Reabilitação
A discussão acabou ofuscando um aspecto fundamental da matéria, que é a ressocialização de presos. Uma hora serão soltos —alguns antes, por conta das progressões previstas em lei, outros cumprirão a pena integralmente. Não há pena de morte ou prisão perpétua no Brasil. Uma pessoa pode ficar, no máximo, 40 anos reclusa (independentemente da gravidade e quantidade de crimes cometidos). 

 

A grande questão é: como sairão? Piores do que entraram? Habilitados para o convívio social e o trabalho ou revoltados e propensos a fazer novas vítimas? 

 

Este é o aspecto prático do problema, mas há também o filosófico/moral/religioso: lembra do “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”? (JOÃO 13: 34-35).

 

Foto: Reprodução/Globo