Cinema

Destaque da Semana: Filhos da esperança

05/06/2020
Destaque da Semana: Filhos da esperança | Jornal da Orla

O título brasileiro do filme entrega a esperança da humanidade como força motriz, mas é a indiferença do protagonista com o mundo que é o ponto determinante para o desenrolar da trama, e é justamente esta indiferença, que o salva de um atentado a bomba logo nos primeiros minutos de projeção. Como crítico, e com a sétima arte tendo produzido filmes com mais de um século de existência, não posso afirmar que um filme tenha o "sei lá o que" melhor da história do cinema, mas aqui vou me arriscar e afirmar que, Filhos da Esperança possui, no mínimo, dois dos planos sequência mais geniais e complexos concebidos por um cineasta. Que me perdoem os fãs de filmes com montagem de videoclipe, mas há poucas coisas no cinema tão fascinantes e eficientes quanto um plano sequência e apenas as cenas da emboscada na estrada e a fuga em uma cidade totalmente destruída pela guerra, já valem a experiência de assistir a esta impecável obra pós apocalíptica de Alfonso Cuarón. 

O filme se passa em 2027. Não se sabe o motivo, mas as mulheres não conseguem mais engravidar. O mais novo ser humano morreu aos 18 anos e a humanidade discute seriamente a possibilidade de extinção. Theodore Faron (Clive Owen) é um ex-ativista desiludido que se tornou um burocrata e que vive em uma Londres arrasada pela violência e pelas seitas nacionalistas em guerra. Procurado por sua ex-esposa Julian (Julianne Moore), Theodore é apresentado a uma jovem que misteriosamente está grávida. Eles passam a protegê-la a qualquer custo, por acreditar que a criança por vir seja a salvação da humanidade. Filhos da Esperança não se destaca apenas em seus aspectos técnicos (que são brilhantes), mas também do ponto de vista narrativo, com uma história inteligente, e repleta de significados e simbologias. Cuarón dirige o longa quase que como um documentário, nos mergulhando no universo no qual a história se passa: em uma Londres cinza, caótica e hostil, repleta de atentados terroristas, o que estabelece um tom de violência e insegurança desde o primeiro segundo. E, já que citei as duas impecáveis cenas dirigidas pelo cineasta mexicano, gostaria de me aprofundar um pouco mais nelas: na primeira, acompanhamos os personagens conversando dentro do carro, brincando e discutindo sobre o futuro, tudo isso com a câmera passeando entre os personagens e culminando em uma violenta perseguição, onde em determinado momento, câmera e personagens abandonam o carro. Tudo sem cortes aparentes. Finalmente, há o longo plano sequência de aproximadamente dez minutos,  onde retrata um confronto em uma cidade destruída, que vai gradativamente aumentando sua dimensão, com centenas de figurantes e diversas explosões e tiroteios, exigindo uma disciplina e coreografia insanamente complexas (reparem no sangue e fuligem que vai acumulando na lente da câmera durante a cena). 

Filhos da Esperança é fotografado de maneira brilhante por Emmanuel Lubezki (sempre ele), com uma câmera sempre na mão e construindo uma atmosfera caótica, tensa e com uma violência extremamente gráfica, dando ao filme um tom documental e de urgência, que revela-se mais do que apropriado para a história. Imaginem a complexidade de manter o tom da fotografia proposta através de longos planos, sem cortes, com mudanças de cenário, centenas de figurantes, explosões, tiros, etc.

Nada desse preciosismo técnico valeria, se não existisse uma narrativa eficiente e uma excelente construção de personagem com um arrebatador arco dramático de seu personagem principal, onde o roteiro o apresenta inicialmente como um homem cínico, alcoólatra e indiferente à humanidade passando por uma redenção bastante plausível, dada a natureza de sua missão. O filme também acha espaço para levantar uma questão extremamente atual, de que não devemos esquecer que nossas ações do presente impactarão significativamente as gerações futuras (e eu que tenho filho pequeno penso cada vez mais nisso).

Contando com uma escolha impecável de elenco, o grande destaque fica com Clive Owen, que definitivamente é o centro do filme: inicialmente, o ator retrata Theo como um homem amargurado e desiludido, sendo corajosa sua opção por ser contido e não chamar a atenção para sua atuação, se tornando gradativamente em um homem determinado e íntegro.

Filhos da Esperança é uma aula de Alfonso Cuarón de como fazer cinema. Tem um precioso trabalho técnico, aliado a sólidas atuações e com uma mensagem bastante atual e que acende o sinal de alerta de que, se não mudarmos nossa forma de enxergar o mundo e ao próximo, estaremos condenando a futura geração a uma inevitável sentença de morte.

Curiosidades: Foi indicado em 2007 ao OSCAR de Melhor Fotografia e Melhor Roteiro Adaptado.