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Está tudo bem em não estar bem.

20/06/2020
Está tudo bem em não estar bem. | Jornal da Orla

A mesa virou de repente.

 

A sala de casa agora é sala de aula, de reuniões, de ginástica.

 

Parecia que seria fácil no começo, vai. Admita isso.

 

Quem sabe não serve para mudar um pouco meus hábitos?

 

Acordo cedo, faço minha atividade física e tomo meu café da manhã de novela, acompanhando o jornal pela TV. Passeio com os cachorros, tomo um bom banho e abro a janela para o sol entrar. Acordo as crianças, dou café para eles, enquanto checo a agenda de aulas online do dia.

 

Ligo o computador e começo a trabalhar. A cada duas horas, paro e leio um pouco daquele livro que está na cabeceira há tempos, só para relaxar. Vou tirar o violão do suporte e voltar a tocá-lo na hora do almoço.

 

Como devo acabar o trabalho mais cedo, vou me inscrever em alguns cursos online, que nunca tinha tempo: alemão, culinária, fotografia, pátina, escultura em gelo, desenho artístico, aramaico, origami básico e filosofia. Um bom vinho assistindo minha série favorita e encerro meu home office.

 

Pensei.

 

No início, foi essa sensação mesmo. Você sentiu que teria controle de tudo e que poderia fazer o dia correr conforme planejou.

 

Mas, como já dissemos por aqui, a vida não está nem aí para o teu planejamento.

 

A internet às vezes falha, o cachorro não para de latir bem na hora da reunião por vídeo e o vizinho resolve furar a parede bem quando você precisa terminar aquele artigo.

 

Depois de alguns dias, a atividade física estava mais para boxe. Mas quem batia era a preguiça. E você apanhava feio. O café do Manoel Carlos foi se transformando em algo mais prático, já pronto na geladeira. E você (re)descobriu o quanto as primeiras séries do ensino fundamental podem ser difíceis. E do infantil, então?

 

A correria parece que se adaptou ao seu novo normal e mais uma vez tomou conta da sua vida sem que você percebesse. Como já está de casa mesmo, não tem problema começar um pouco mais cedo. E não custa nada ficar até um pouco mais tarde.

 

E então aquele dia prazeroso foi caindo mais uma vez no automático. O novo automático desse novo mundo.

 

E a cobrança por ser produtivo e genial em tudo passou a ser mais forte.

 

Como assim não vou conseguir ler meu livro, estudar com meu filho, fazer minhas aulas particulares, preparar o almoço, me exercitar, meditar, comer mais frutas, acompanhar as notícias e ainda ser destaque de produtividade no meu trabalho.

 

Porque não tem como. Porque não dá. E está tudo bem com isso.

 

O que começou como algo que seria diferente, prazeroso e proveitoso, foi tomando ares de obrigatório. Criou-se uma atmosfera de que era preciso aproveitar cada segundo de tempo da quarentena para fazer algo novo, revolucionário, enriquecedor para mente, corpo ou profissionalmente.

 

Mas calma. Não é preciso estar em alta rotação o tempo todo. Pense que os movimentos que você já deu no tabuleiro não permitem mais que você volte para o início. As “casas” que você conquistou neste jogo são suas. É daí para a frente.

 

Existem dois tipos de pessoas doentes nessa pandemia: as que estão com Covid e todas as outras que estão tendo que lidar com essa situação inédita. Todo mundo está passando, em algum nível, por um momento difícil psicologicamente.

 

Está tudo bem em só querer sentar-se e fazer da TV um espelho. Com olhar perdido, enquanto os pensamentos divagam. Não há problema em adormecer ao final do dia, deitado no sofá, fazendo carinho no cachorro. Está tudo bem em passar horas sem ter que pensar em como ocupá-las.

 

A gente se assustou quando o mundo lá fora freou bruscamente. E mesmo com nosso corpo parado em casa, nossa mente continuou na inércia.