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Deixa que eu dirijo, pai

09/08/2020
Deixa que eu dirijo, pai | Jornal da Orla

A viagem já começou tem um tempo. Há uns bons anos, eu diria. Mas vale a pena eu pegar este primeiro retorno à direita para revê-la. 

Sente-se aí, pai. Hoje sou eu que vou te levar para dar uma volta. Coloca o cinto.

Do banco de trás, eu via a estrada se desenrolar à frente do carro e, admirado, ficava imaginando como você sempre sabia o caminho a seguir. Você sempre soube.

Sem mapas, muito menos GPS. No máximo uma paradinha no posto, uma água, uma rápida conversa com o frentista e voltávamos com a certeza do caminho certo. Batucando os dedos no volante, acompanhando a música que tocava naquele Roadstar de gaveta, que você carregava por onde a gente fosse. Segurança, você dizia. Ora tocava um Kenny G, ora um Freddie Mercury.

Ajeita o quebra-sol. Uma olhada nos retrovisores. Mais um gole de água. Um comentário sobre como o carro estava rendendo bem e o famoso “já estamos chegando”, depois das insistentes perguntas, vindas do banco de trás.

Quantas vezes fizemos este caminho? Quantos outros fizemos? Na direção, do carro – e da minha vida – estava sempre você. Pronto para responder à pergunta que fosse. 

Com o passar do tempo, eu sentei-me no banco do carona. Mesmo quando estávamos nós quatro. Era uma espécie de rito de passagem. Dali da frente, realmente a perspectiva era diferente. A viagem parecia outra.

Você ia me ensinando algumas dicas e mostrando como deveria fazer em cada situação. 

Sério mesmo que havia tantos riscos assim? Eu tinha que ficar ligado a cada ponto desta forma? Como você fazia para prestar atenção em tudo ao mesmo tempo? E como é que nós nunca notamos isso lá atrás? Você sempre fez tudo parecer tão simples, fácil, natural. Caraca, meu velho. Não sei se vou conseguir.

Agora era você no banco da direita. Check-list antes da partida. Tudo ajeitado. Últimas instruções. Vamos nessa. Que honra ter um copiloto desses comigo. A sensação de responsabilidade se fundia com o medo de te decepcionar. Alguns quilômetros e a confiança foi sendo conquistada. Aos poucos a direção foi sendo passada.

Ainda lembro do dia daquela viagem. Dessa vez você não iria. Tinha que ficar e trabalhar. Caberia a mim a incontestável função que sempre foi sua. A estrada era a mesma. O destino também. O carro eu já conhecia. Mas aquela responsabilidade, era nova. 

Debruçado na janela, vieram os últimos avisos e conselhos. O carinho bagunçando meu cabelo e as palavras: tchau, moleque. Boa viagem.

E então, parti para a minha viagem. Para mim, esta é a referência de quando você me passou o volante e mostrou que agora era eu que estava no comando. A minha vida agora dependeria do caminho que eu escolhesse. Era eu quem determinaria a velocidade e a direção. E, principalmente, teria que ficar atento aos riscos e resolver os problemas que aparecessem. 

Ao olhar no retrovisor, eu tinha a visão que ao mesmo tempo era nova e familiar. Eu sentado ali, passando o tempo e olhando pela janela.

Às vezes a viagem não é nada fácil, pai. Mas disso você sabe, né? Também já percorreu bastante da sua. Em alguns momentos, o que eu mais quero é voltar pro teu carro, me jogar no banco de trás, ajeitar um travesseiro no apoio de cabeça e deixar você decidir. 

Sabe o que facilita? Muitas vezes eu sinto que estou em uma espécie de piloto automático. Quando percebo, estou seguindo os caminhos que você deixou. 

Ao olhar pra tua estrada do passado, eu vejo o meu caminho do futuro. 

Não é coincidência que a vida te levou para a profissão que você tem hoje. De dentro do seu táxi, você cumpre a missão a qual sempre se dedicou: mostrar o caminho para as pessoas chegarem aos seus destinos. E isso me enche de orgulho.

O brinde e o abraço terão que esperar um pouco este ano. Estamos guardados na garagem e não podemos nos estacionar muito próximos. 

Mas como em um sinal de farol alto, eu te sinalizo daqui: te amo muito.

Feliz dia dos pais.