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Incidente em Antares

19/08/2020
Incidente em Antares | Jornal da Orla

Erico Veríssimo já era um escritor consagrado quando publicou, em 1971, este genial petardo criativo e muito, muito engraçado. Corriam, nessa época, os tempos mais agudos da ditadura militar, com o AI5 externalizando efeitos sob uma forte corrente propagandística de apelo patriótico, como acontece em todos os regimes com notas fascistas: a exploração da Seleção Canarinho, as músicas ufanistas e o famigerado “Brasil: ame-o ou deixe-o”, num servil exercício de vassalagem ao slogan estadunidense “America, love it or leave it” dos tempos de Vietnã.

 

Foi neste clima que veio a lume Incidente em Antares, angularizando um realismo fantástico muito bem vindo às letras brasileiras. Imagine isto: uma pequena cidadela, dominada politicamente por duas famílias, sofre uma espontânea greve a qual todas as categorias profissionais aderem. Neste meio tempo morrem 7 pessoas, 7 antarenses que não puderam ser enterrados decentemente. Inconformados, levantam-se de seus caixões e rumam do cemitério à cidade para ajustar algumas contas com os vivos.

 

As metáforas e referências ao longo do livro o deixam ainda mais interessante. Exemplos: a violência e o patrimonialismo sempre presentes; o sucessivo autoritarismo; as menções a personagens reais da época; a imputação do adjetivo “comunista” a todos que criticavam a ordem imposta (num episódio, um padre terá que esclarecer ao militar que “eles não são comunistas, general, são grevistas”); a data utilizada para situar o evento central da trama (13.12.1963, 5 anos antes da edição do AI5, editado em 13.12.1968); dentre tantas outras criativas alusões. Mas não se engane: apesar dos motivos pesados, é o bom humor que comanda o livro.

Divirta-se muito e se espante com o talento monstruoso de Erico Veríssimo.  
 

Motivos para ler:
1 – Incidente em Antares integra o pavilhão dos romances brasileiros de 1º escalão. Um clássico absoluto e diferente de tudo o que há por aí. Tanto talento parece dar razão àqueles que dizem que a literatura brasileira se ombreia, quiçá mesmo ultrapasse, tantos outros escritores internacionais consagrados;

2 – O estilo literário realismo fantástico, quando manipulado com maestria, é delicioso. É que esse estilo permite tudo. A mente do gênio pode, assim, flutuar nos confins da (in)consciência e produzir o inimaginável. Gabriel Garcia Márquez, um dos maiores orgulhos da América Latina, ganhou seu prêmio Nobel escrevendo assim;

3 – A literatura é muita coisa. É diversão, pode ser passatempo, também é erudição, outras vezes atinge em cheio o coração do leitor e lhe abre um espaço novo no peito. Também é resistência quando o mundo obscurece. Disse Erico sobre os tempos de chumbo da ditadura: “Sempre achei que o menos que um escritor pode fazer, numa época de violência e injustiças como a nossa, é acender sua lâmpada […]. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.”