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A hora da estrela

21/10/2020
A hora da estrela | Jornal da Orla

Foi andando numa rua do Rio de Janeiro que Clarice notou o sentimento de perdição estampado no rosto de uma mulher nordestina. O resultado desse relance, despretensiosamente aprisionado num segundo, transformou-se naquele que é encarado como o livro mais surpreendente de Lispector. 

 

O livro narra as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Macabéa é uma jovem que não tem conexão com a vida. Vive para nada e sem noção de existir. Carrega a perene sensação de que incomoda a todos por ocupar espaço no mundo. É calada por não ter o que dizer. Reza por rezar, porque não tem uma pálida ideia de Deus. Quando recebeu o diagnóstico de tuberculose não entendeu e não soube o que dizer, então respondeu ao médico:“Muita obrigada, sim?”. Tão tola que sorria para os outros na rua, sem nunca receber um sorriso de volta. Seu envolvimento com o metalúrgico Olímpico é inacreditável. 

 

Macabéa, porém, não se considera triste. Sua alienação leva-a ao ponto de não se considerar “muito gente”, o que paradoxalmente atua como um escudo contra as tantas dores que se projetam contra ela; afinal, não se preocupa com o futuro quem acha que não merece muito da vida. Mastiga aspirinas para aliviar dores muito internas que não sabe precisar de onde vêm, além de cultivar um estúpido luxo: coleciona recortes de anúncios comerciais. 

 

É uma tragicomédia. As relações travadas com o chefe, com Glória e com Olímpico despertam o riso, algumas são mesmo hilárias. Mas o narrador (o pseudônimo Rodrigo), condoído com a vida vazia e sem qualquer luminosidade, faz doer em nós qualquer coisa que não sabemos o nome. A vertigem do final cala a alma. Talvez por isso Clarice tenha dito que “este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta.” 

 

Motivos para ler:

 

1 – Enfim, Clarice Lispector. Eis aqui uma escritora do tipo raro que consegue, com sua literatura, emoldurar um mundo inteiro à sua maneira. Aclamada pela crítica especializada como referência de primeira grandeza da literatura brasileira, viveu uma intensa e curta vida. Uma enorme e bela mulher;

 

2 – Este livro não chega a 90 páginas. Inicia-se com reflexões poderosíssimas do narrador Rodrigo e depois avança para as desventuras de Macabéa. Sentimos raiva, pena, dó, diversão, desprezo e horror, sempre conduzidos por um nível literário altíssimo até o desfecho trágico. Tomará duas horas de sua vida. Deslumbre-se com a escrita de Lispector e entenda o motivo pelo qual, afinal, ela é tão reverenciada;

 

3 – Já falamos de livros que tiveram adaptações cinematográficas em outras colunas, mas aqui a coisa vai para outra dimensão. Aqui finalmente podemos falar, com propriedade, que livro e filme se equivalem. A película foi premiada no Brasil e no mundo, com destaque para os prestigiados Urso de Prata alemão e Festival de Havana cubano. A atuação de Marcélia Cartaxo como Macabéa é, sem favor algum, das melhores coisas já vistas na telona. É mesmo do tipo imperdível. 

 

 

 

 


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