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Os Judeus do Marrocos e a Selva Amazônica

28/10/2020
Os Judeus do Marrocos e a Selva Amazônica | Jornal da Orla

A presença judaica no Brasil é muito mais antiga do que se pensa e faz parte, inclusive, do imaginário popular: lendas sobre expedições judaicas à Amazônia em tempos bíblicos são frequentes no Norte do país.

 

Fugidos de massacres, há séculos eles vivem entre índios e seringueiros e foram importantes personagens na história da região.

 

Os protagonistas dessa história eram judeus que moravam principalmente em Tetuan e em Tânger, cidades no norte do Marrocos, África, e que foram parar em pleno coração da floresta amazônica.

 

Esta imigração é uma parte relevante da grande epopeia do sefardismo ocidental.

 

Obrigados a viverem fechados em pequenos guetos, passando fome e sofrendo perseguições, os judeus marroquinos viram na misteriosa Amazônia uma chance de escapar da insuportável discriminação que enfrentavam.

 

E começaram a migrar em massa logo no começo do século 19. O êxodo continuou por quase todo o século e formou na Amazônia uma comunidade que contava, no fim da década de 1880, com mais de 50 mil descendentes.

 

Os judeus que saíram do Marrocos e vieram para o Brasil tinham origem ibérica. Haviam sido expulsos da Espanha em 1492 e de Portugal quatro anos mais tarde. Com a expulsão, um dos lugares escolhidos para a nova morada foi o norte da África.

 

A guerra hispano-marroquina, em 1870, ou a pobreza das comunidades judaicas no Marrocos, espalhadas pelas áreas de influência espanhola, como Tanger, Tetuan ou Casablanca, e árabe, como Rabat, Fez e Marrakesh, entre muitas outras, poderiam ser apontadas também como fatores que motivaram a saída dos judeus naquele tempo.

 

No Marrocos, eram conhecidos como megorachim – espanhóis exilados sem pátria. Apesar de tudo, alguns conseguiram prosperar. Mesmo assim, os judeus continuavam a sofrer constrangimentos, humilhações e confisco de seus bens – fora os já rotineiros massacres.

 

O auge do ciclo da borracha, entre 1880 e 1910, do mesmo modo, atraiu comerciantes e outros trabalhadores, esse período coincidiu com o pico da imigração judaica para a Bacia Amazônica; eles estabeleceram novas comunidades ao longo do interior do Rio Amazonas, em Santarém e Manaus, Brasil, e tanto quanto Iquitos, no Peru, no lado leste da Cordilheira dos Andes.

 

Proclamada a República no Brasil, em 1889, o decreto 119 do governo provisório de Deodoro da Fonseca aboliu a união legal da Igreja com o Estado e instituiu o princípio da plena liberdade de culto. Nessa época, os judeus oriundos do Marrocos viviam, na Amazônia, o pleno apogeu do ciclo da borracha – o que serviu para incentivar ainda mais a já contínua migração.

 

A primeira parada dos judeus marroquinos costumava ser Belém, no Pará, onde eram recebidos por famílias como os Nahon, Serfatty, Israel e Roffé, que já estavam aqui porque tinham negócios com empresas inglesas e francesas. Eles providenciavam roupas para os recém-chegados e os alojavam numa hospedaria. Lá, os rapazes recebiam rápidas e singelas informações sobre como deviam se comportar nos sítios ao longo dos rios onde iriam viver nos próximos anos.

 

Não havia muita dificuldade quanto ao idioma, já que todos falavam espanhol e haketia (uma mistura de espanhol, português, hebraico e árabe desenvolvida no Marrocos).

 

 Os judeus foram os primeiros regatões (caixeiros-viajantes) da Amazônia. Suas embarcações levavam as mercadorias para serem trocadas nos seringais mais distantes por borracha, castanha, copaíba (cujo bálsamo era, então, a medicação por excelência das doenças venéreas na Europa), peles e couros de animais silvestres.

 

A preocupação em se adaptar, sem perder a própria identidade, fez com que adotassem estratégias diversas de relacionamento com a sociedade em torno. Alguns traduziram seus nomes para se parecerem menos diferentes, como, por exemplo, Elmaleh para Salgado ou Bar Moshé para Alves.

 

Apesar do convívio cordial, os judeus foram, eventualmente, alvo de manifestações de intolerância. Mas o horror, mesmo, ocorreu em 1901, nas localidades de Cametá, Baião, Mocajuba, Araquereruba, Mangabeira, Prainha, avançando pelas margens dos rios, onde os judeus tinham suas casas-armazéns.

 

Entretanto, de um modo geral, os judeus marroquinos que vieram para a Amazônia conseguiram se adaptar bem às novas condições. Eliezer Salgado (Elmaleh) trabalhava no regatão, no rio Purus, para sustentar nove filhos. Servia, também, de chazan e mohel, oficiava casamentos e brit-milot e, em sua casa, como em outras ribeirinhas, oficiavam-se os serviços de Rosh Hashaná e Yom Kipur, segundo relato de seus filhos e descendentes.

 

Para esses judeus marroquinos, a família era o núcleo a partir do qual construíam sua judeidade em plena Amazônia. A identidade judaica não era apenas profundamente enraizada, mas admitida com orgulho e alegria. As histórias contadas pelos descendentes remetem à tradição dos antepassados: os que moravam longe pegavam seus batelões para passar os Yamim Noraim nas cidades maiores, como Alenquer ou Cametá.

 

Na sexta-feira à tarde, depois de fechar a loja, iniciavam-se os preparativos para o Shabat com toda a hiba (pompa), vestindo-se de linho branco, engomado e gravata. A mãe, numa cadeira de espaldar, punha-se a meldar (rezar) e pitnear (cantar) o Shir Hashirim (Cântico dos Cânticos), mizmorim (canções) e, durante o Arbit (reza da noite), reuniam-se em casa de um ou outro.

 

Os filhos aos poucos deixavam de falar haketia, uma mistura de árabe, hebraico e ladino, mantendo apenas expressões muito significativas e sem paralelo em português (como traduzir, por exemplo, achlash, fecheado, abu, chosmin e sachorita?), e o ladino ficava como uma segunda língua falada em casa, entre los nuestros.

 

Mesmo na ausência de rabinos, shlichim zelavam pelo rigor ritual, incluindo a lavagem do corpo e providências para o enterro. Ainda hoje estes cemitérios sobrevivem como testemunhos da história judaica na Amazônia.

 

Os tzadikim eram venerados e dentre eles destacava-se Shimon Bar Iochai. À mesa, a cashrut era adaptada às condições locais, sem ferir a Halachá. Em vez do vinho, a cachaça, as frutas tropicais, matzá de tapioca e peixes para substituir as iguarias marroquinas. Com exceção da dafina e do couscous, de que não abriam mão de forma alguma.

 

Com o fim da riqueza propiciada pela borracha, muitos judeus abandonaram o "sertão" e se estabeleceram em Belém ou emigraram para o sul.

 

Hoje, a comunidade de Belém conta com cerca de 300 a 400 famílias; a de Manaus, com 200 famílias. Há uma integração completa no novo ambiente, sem perda, contudo, da identidade ancestral.

 

 


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