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D10s em três atos

26/11/2020
D10s em três atos | Jornal da Orla

Ato um: Deus do futebol

 

Eu tinha 5 anos e essa é provavelmente uma das primeiras lembranças que tenho da vida. A copa era na Itália, 1990. E nas minhas memórias, estou sentado na frente da TV assistindo aos jogos com meu avô.

 

Eu não entendia nada de futebol, mas lembro da sensação do jogo contra a Argentina. Uma aura de tristeza e conformismo pela derrota inevitável, visto quem estava do outro lado.

 

 “Não dá pra deixar esse cara jogar”, era o que os adultos ecoavam no silêncio melancólico da sala.

 

Cresci com meu pai falando que era inacreditável o que aquele cara fazia com a bola.

 

Ato dois: Um Deus autodestrutivo.

 

A segunda referência que tenho de Maradona é o gol contra a Grécia na Copa de 94. Aquele da comemoração, desabafo, raiva colocada pra fora. Era minha primeira copa mesmo. E aquela cena talvez tenha sido a que mais me marcou.

 

Um Maradona que já lutava contra a única marcação da qual ele não conseguiria se livrar: a dependência química.

 

Maradona foi o pior algoz de si mesmo. O pior adversário que enfrentou.

 

Ato três: um Deus humanizado.

 

Como em um lançamento do campo de defesa feito por Diego, vamos dar um bom salto no tempo. O ano é 2017, e a terceira grande referência que tenho de Maradona é, justamente, a que me fez perceber sua grandeza.

 

Cusco, Peru. Eu tomava uma cerveja com pessoas de todos os cantos do mundo em um hostel, falando sobre diversos assuntos em todos os idiomas que fossem possíveis. Uma torre de Babel que se misturava ao som dos copos, música alta e risadas por todos os lados.

 

Foi então que, sem que o ambiente percebesse, algumas pessoas receberam uma espécie de mensagem. Um código. Uma convocação divina.

 

Eu nem sequer tinha percebido que a música havia mudado e quando reparei, em todos os cantos, pessoas pararam suas conversas naquele momento e se levantaram. Em mesas aleatórias. Quem estava do lado de fora, entrou correndo. Alguns funcionários do bar subiram no balcão. Todos pulavam, giravam suas camisas no ar e entoavam juntos o mesmo grito do refrão:

 

“Marado! Marado!”

 

Eu fiquei admirado. Olhava ao redor e percebia que aquelas pessoas não tinham conexão nenhuma entre si. A não ser a maior de todas: uma mesma paixão.

 

Não era um grito de guerra, não era uma simples homenagem ou um canto de torcida. Era um compromisso. Um chamado superior que deveria ser cumprido. Um orgulho que precisava ser demonstrado.

 

Eu estava presenciando um culto.

 

Maradona é para eles um Deus mesmo. Mas um Deus próximo dos homens.

 

Genial, talentoso e falível.

 

Maradona estaria em cima daquele balcão. Abraçaria aquelas pessoas, cantaria, dançaria e choraria junto com elas.

 

A discussão se Messi é melhor jogador que ele ou não, é desnecessária. Talvez até seja. Mas não é sobre futebol. Nunca foi só futebol.

 

“Maradona não foi só um grande jogador. Maradona foi um herói de guerra”, resume brilhantemente o jornalista Cláudio Zaidan.

 

Ele deu ao povo argentino a revanche de uma guerra perdida. A guerra contra o império. O Davi contra Golias. Com todos os requintes que esta revanche poderia ter: um gol de mão e um gol antológico. As Malvinas estavam vingadas.

 

O herói que erra, que falha. Que se desfaz e se desnuda do divino na frente de todos.

 

Que tem estas falhas reconhecidas por seus súditos. E que mesmo assim, ou até mesmo por isso, o reverenciam ainda mais.

 

É muito mais fácil se inspirar em alguém que é tão humano quanto você.

 

Que pisa feio na bola mesmo sendo craque. Mas ainda assim, inspira. Faz com que se acredite que pode chegar.

 

Ao assistir à devoção, ao culto daquelas pessoas no bar, percebi que realmente era incrível o que esse cara fazia, pai.

 

Só que já não era mais preciso ele estar com a bola.

 

Que sorte ter presenciado parte dessa história. Que pena não a ter presenciado inteira.

 

Gracias, craque.

 

 


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