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A assimetria e a vida

10/02/2021
A assimetria e a vida | Jornal da Orla

Em coluna anterior mencionamos a feliz sina dos “escritores tardios”, de todos aqueles que se ocupavam de ofícios alheios à literatura, mas que, por circunstâncias do destino, tornaram-se escritores. Exemplo fortíssimo será sempre o do português José Saramago: com mais de 50 anos se pôs a escrever e chegou ao topo da carreira literária, sendo até hoje o único Nobel da língua portuguesa. 

 

O italiano Primo Levi, químico de formação, tornou-se escritor por circunstâncias adversas; aliás, das mais adversas da história. Passou a escrever porque sobreviveu. Em suas palavras: “Aportei na categoria de escritor porque fui capturado e terminei num campo de concentração como judeu”. Ao seu primeiro livro, “É isto um homem?”, já dedicamos uma coluna e reforçamos: é o melhor relato sobre a vida num campo de concentração nazi, não à toa mundialmente cultuado. Se é verdade que a narrativa do sobrevivente é um gênero literário, Primo Levi é o seu grão-mestre. 

 

A assimetria e a vida é um ágil livro de ensaios dividido em duas partes. Na primeira, intitulada “Buraco negro de Auschwitz”, abordam-se múltiplos aspectos do holocausto. Sabemos que o tema é saturado, mas não se encontram ponderações como as de Primo Levi em lugar algum. Seus pensamentos sobre o enredo do terror, as razões obscuras e os tabus do pós-guerra são brilhantes. A segunda parte, “Profissões alheias”, traz escritos sobre tudo: livros, filmes, tecnologia, ficção científica, política, o futuro. Tal como o seu conterrâneo Umberto Eco, Primo Levi consegue falar com muita propriedade sobre tudo.   

 

Muito se especula sobre sua sinistra morte, causada pela queda no vão da escada do prédio onde vivia. Uns falam em acidente, outros em suicídio. Wiesel, também um escritor sobrevivente, declarou na época que “Primo Levi morreu em Auschwitz há quarenta anos”. 

 

Motivos para ler:

1– Primo Levi pertence aos eruditos. Foi um químico renomado, e a Química salvou-lhe a vida: não foi morto porque, além de outros fatores de sorte, seus conhecimentos eram úteis no campo de concentração.  Dedicou-se à literatura imprimido por um dever de falar. Seus livros mais famosos são “É isto um homem?” e “A trégua”. Do primeiro já falamos. Do segundo, narrando sua difícil volta para casa após a libertação, falaremos;

 

2– O afastamento histórico é por vezes necessário para tomarmos a real dimensão dos fatos. Primo Levi relatou que no imediato pós-guerra muitos se recusaram a falar do holocausto, havendo quem o negasse. Mas o negacionismo de má intenção, se seduz incautos num primeiro flerte, não resiste ao tempo. Com espíritos desarmados, as pessoas tendem a enxergar com mais clareza. Note que, no Brasil, ainda há uns poucos que negam a virulência da ditadura militar brasileira – torturadora, assassina, corrupta e repressora dos mais básicos direitos cívico-fundamentais. Há quem seja, tolamente, antivacina. Negacionistas fanáticos ficam, sempre, relegados ao recanto ridículo da história;

 

3– Ler ensaios é um hábito excelente, mormente quando confeccionados por gente altamente inteligente. Por meio deles vislumbramos a beleza e a profundidade da erudição humana.  A assimetria e a vida pode ser lido sem solução de continuidade, porque cada ensaio fala por si só. Com pensamentos muito bem construídos e embasados, só acrescenta a quem os lê. Experimente. 

 

 

 


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