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O último voo do flamingo

17/02/2021
O último voo do flamingo | Jornal da Orla

Se construir consensos opinativos sobre escritores já é tarefa difícil, a unanimidade pode ser uma verdadeira quimera. Mas não para Mia Couto. Nunca vimos um “contudo”, “porém” ou “entretanto” quando se trata de analisar qualquer obra sua. Eis um escritor completo, com tudo nas mãos: o manejo único e brilhante da língua, a doçura que sempre permeia seus livros, a dimensão poética constante, a criatividade exuberante. É um talento de coração cheio e admirado em todo o mundo. 

 

O tema central da literatura de Mia Couto é a África; mais de perto, as lendas de seu Moçambique, como esta do flamingo: a ave sagrada que anuncia a eterna esperança.  É o canto dos flamingos que guia os pescadores perdidos na direção de casa. Foi o voo do flamingo que trouxe o primeiro pôr do sol, revelando ao mundo a noite – e com ela, o descanso. Disse Mia Couto que deixou uma pena de flamingo sobre seu computador enquanto escrevia este livro. A pluma lá ficou por dois anos. 

 

O último voo do flamingo fala do conturbado momento pós-colonial de Moçambique, agravado pelas misteriosas mortes de soldados estrangeiros da força de paz. Para decifrar o enigma, a ONU envia o italiano Massimo, que conta com a ajuda de um nativo tradutor – o narrador da estória. Cativantes e sinistros personagens afluirão à trama. O toque de gênio fica por conta do terço final do livro, quando o povo resolve assumir o seu próprio destino, nem que isso custe o fim do mundo – literalmente. 

 

É um romance estupendo: engraçado, terno, poético (que final!) e respeitoso, que fala da dolorosa busca de um povo pela sua própria identidade. Disse o feiticeiro da vila que “a vida é um beijo doce em boca amarga”. Talvez seja assim mesmo.  

 

Motivos para ler:

1– Mia Couto, biólogo de formação, é um profícuo e multipremiado escritor. Seus neologismos poéticos são um show à parte. Sabe usar a língua portuguesa na sua inteireza e vai além. Ninguém escreve como ele. Dele recomendamos, sem medo de errar, tudo. O homem não tem ponto fraco. Vale o alerta: Mia Couto vicia; 

 

2– Já dissemos noutras oportunidades: o livro é um excelente instrumento para expandir os horizontes de nossos universos particulares. Nada sabemos da vida senão da nossa curta fração individual.  Somos todos compostos de uma parte herdada, transmitida pelo código genético e pela criação que tivemos, e felizmente por uma parte adquirida, esta página em branco que nos dá liberdade para tomarmos contato com outros povos, línguas e culturas – como o Moçambique de Mia Couto. Um livro é sempre um buraco de fechadura para outros mundos. Espie e aprenda sobre a África. Espie muito, espie mais, espie sempre;

 

3– A sabedoria tem muitas facetas. É normalmente vista em ambientes intelectuais, mas certamente deita raízes em solo de gente simples, de pessoas sem estudos formais, mas conhecedoras dos segredos profundos da terra. Este livro é um bom vislumbre disso, recheado de citações espetaculares de seus personagens. E não será sábio quem diz que “amor com amor se apaga”?

 

 

 

 


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