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31 de março, um dia para ser chamado pelo nome: golpe

31/03/2021
31 de março, um dia para ser chamado pelo nome: golpe | Jornal da Orla

Em 31 de março de 1964, militares deram um golpe de Estado a pretexto de livrar o Brasil de uma ditadura e implantaram… uma ditadura. Com apoio de parcela de empresários, órgaos de imprensa e famílias tradicionais, retiraram o então presidente João Goulart para, diziam, instalar no lugar um governo provisório até a eleição que se realizaria no ano seguinte. Ficaram 21 anos. 

Foi um período de trevas. Supressão de direitos, assassinatos, torturas, corrupção desenfreada, aprofudamento da miséria e desigualdades sociais, um "milagre econômico" que levou o país praticamente à falência.

Hoje, quando aquele famigerado episódio completa 58 anos, há ainda quem insista em "comemorar" a data, ainda mais num momento em que o próprio presidente da República, eleito democraticamente, dá sinais claros de que não só simpatiza como pretende implantar um regime de exceção — mas foi barrado pelos comandantes das próprias Forças Armadas. 

Assim, é mais do que oportuno resgatar o seguinte artigo assinado pelo jornalista Carlos  Mauri Alexandrino, publicado originalmente em 2014 (quando a "revolução" completou 50 anos). Confira:

 

Que a terra não seja leve

MAURI ALEXANDRINO*

 

Golpe desencadeado em 31 de março de 1964 atingiu de maneira particular a cidade de Santos

1964 provou que, nas condições adequadas de temperatura e pressão políticas, velhinhas bem vestidas brandindo terços podem ser muito mais perigosas que garotos mascarados atirando coquetéis molotov. As denominadas "marchas da família", que ocuparam os idos de março daquele ano, forneceram a massa crítica que os militares precisavam para o golpe de Estado. Santos foi escolhida a dedo para uma demonstração inequívoca de força, até para sossegar os norte-americanos que patrocinavam aquilo tudo. Qualquer dúvida sobre o controle da cidade e da região significaria uma invasão por tropas estrangeiras, o que não ficaria bem para os EUA nem para os militares do "Brasil ame-o ou deixe-o".

Dito assim parece loucura, mas naqueles dias bicudos uma frota estadunidense, com tropas, helicópteros, navios de abastecimento, seis destroieres e um porta-aviões rumava para Santos, na chamada "operação brother sam". Isso está detalhado em 16 comunicados do Estado-Maior Conjunto das forças armadas dos EUA, hoje depositados na biblioteca Lyndon Johnson, o presidente deles na ocasião. Temiam particularmente pelo porto e pela Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão.

 

Guerra psicológica
Por isso, na primeira semana de abril, centenas de cidadãos santistas  foram presos, quatro em cada cinco sindicatos sofreram intervenções militares, outras organizações, incluindo a União das Sociedades de Melhoramentos dos Bairros, o prefeito eleito foi trocado por um capitão-de-fragata da Marinha, foram suspensos os trabalhos da Câmara Municipal. Viaturas policiais foram colocadas a zunir inutilmente de sirenes ligadas pelas madrugadas da cidade, um navio velho foi ancorado no estuário para servir de prisão política, os espancamentos de "comunistas" foram liberados para a Polícia Marítima, particularmente agressiva e violenta. 

Tudo isso era parte da "guerra psicológica" planejada pelos golpistas para assombrar a cidade rebelde. Nela, nem a mentira nem o ridículo contavam: foram apreendidos livros de Tolstoi e Dostoievski, discos de Tchaikovski, um cargueiro soviético foi retido no porto, exemplos de um vexame intelectual que mostrava bem o que estava por vir. Não importava se as armas e munições que os jornais diziam estarem escondidas em sindicatos jamais tenham sido encontradas. Os golpistas sabiam que não existiam. A imagem mais nítida do pavor da cidade naqueles dias ficou bem registrada em prosaicos anúncios classificados nos jornais: "Fulano de Tal, com tais documentos, declara a quem interessar possa que jamais foi e não é comunista." São páginas cheias desse tipo de coisa. O medo move montanhas.

Guerra fria
Com o passar do tempo coisas e fatos se deslocam. É preciso retomar o contexto do período para entendê-lo. No início da década de 60, Santos estava para o Brasil assim como o ABC estava no final dos anos 70 e início dos 80, vinte anos depois. Trabalhadores bem pagos e organizados, capazes de ter a única central sindical municipal que já existiu, de articular greves gerais na cidade e de participar ativamente do debate político nacional. Uma presença invulgar de comunistas e esquerdistas em postos de comando, desde sindicatos até a administração pública. Era a principal cidade brasileira fora as capitais.

E havia a chamada "guerra fria", os EUA paranoicos com novas Cubas espalhando-se pelo continente, patrocinadas pelo "ouro de Moscou". O dinheiro da CIA, a central de espionagem estadunidense, jorrou fácil e sem limites para os golpistas civis e militares, para comprar jornais, garantir "apoio popular" e mobilizar tudo que podiam contra o governo constitucional brasileiro, entendido como um risco à segurança do quintal. Sem meias palavras, era assim mesmo que os jornais americanos tratavam a questão brasileira, qualquer arroubo nacionalista era uma "rebelião no quintal" e ponto final. Depois do Brasil viriam Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, Peru, Bolívia, Venezuela, sem falar da América Central dominada por generais chapeludos desde muito antes.

Mas, como a guerra era fria, era preciso manter as aparências. Extinguiu-se a participação política em troca de dois partidos, a Arena e o MDB, um que dizia sim e outro que dizia talvez, não necessariamente nesta ordem. Eleições cartas marcadas, como a de 1965 em Santos, serviam apenas para conferir um suspiro democrático ao que não era. A oposição, por exemplo, só pôde participar da última semana de campanha.

Quem manda?
Como em todo golpe de Estado, a dificuldade era saber quem mandava. Militares também se dividem em muitos grupos e esses grupos lutavam pelo poder. Os jornais censurados, ou autocensurados, não relatavam essa luta interna. E, nas ruas, em 1968, quatro anos depois do golpe, esgarçava-se a imagem de bom-mocismo dos fardados e a oposição consentida, abrigo de toda a oposição àquela altura, começava a ameaçar, pequenos grupos estavam em armas…

Veio o golpe dentro do golpe, 13 de dezembro de 1968. Foi quando começou de fato o império dos generais doentios, dos coronéis assassinos e dos capitães sádicos. Ninguém tinha mais controle sobre os porões, os órgãos de segurança agiam como bem entendiam, lutavam entre si por poder, vingança e dinheiro. Muito mais gente morreu neste período do que durante o golpe de estado, tiveram dedos e dentes arrancados para evitar reconhecimento pericial, corpos jogados ao mar ou em valas em cemitérios ermos. O deputado santista Rubens Paiva foi um desses que até hoje não se encontrou o corpo.

Ousadia punida
Santos, um mês antes do novo golpe, havia eleito um prefeito de oposição, Esmeraldo Tarquínio, socialista e negro além de tudo. Foi deposto antes mesmo de assumir, caso único, com seu mandato cassado sem explicações, perdeu seus direitos políticos por dez anos. Foi substituído por um general sem votos e compostura. A cidade foi punida por sua ousadia: naquele mesmo ano foi declarada área de interesse da segurança nacional, não elegeria mais prefeito algum, e seria governada por homens escolhidos pelos militares.

Para a vida comum, isso significou o início da decadência a que Santos demoraria 20 anos para deter e começar a reverter. Desemprego, empresas fechadas, falidas, sedes transferidas para outros lugares, em pleno milagre brasileiro. Por aqui não se viu dele. Com a  vida política extirpada, a cidade foi calada a muque. A população foi simplesmente afastada para o lado. Um exemplo disso foi colocar um terminal de grãos na Ponta da Praia, contra todo bom senso técnico e político. Poluição e qualidade de vida eram termos que só "subversivos" empregavam. E ser subversivo era comprar uma passagem só de ida, se me entendem.

Medo geral
Nas salas de aula, professores e alunos com medo, uns dos outros e de todos, havia mais de 600 informantes pagos pelos órgãos de segurança, uma sopa de letrinhas como SNI, Ciex, Cenimar, Dops e outras, às quais se juntavam vigaristas civis do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, a Falange Pátria Nova, FPN, e mais um bando de gente que está muito bem no lixo da história. Todos eles para vigiar seu jeito, suas ações, suas palavras, o tamanho de seu cabelo, a música que você ouvia, os jornais que lia, os livros…

Roubo dos cofres públicos nunca houve nem haverá como naquele período. Foi um saque generalizado. Quem vê a corrupção sob a democracia não pode ter ideia do que foi aquilo. Estradas inteiras foram pagas e não construídas, ouro de fundos nacionais foi transferido para particulares em aviões militares, as embaixadas brasileiras eram conhecidas como "dez por cento" em todo o mundo, não havia limites ou controle – ainda pagamos hoje por desvios gigantescos feitos naquele tempo.

A Prefeitura de Santos, por exemplo, gastou mais dinheiro que a Petrobras anunciando na revista O Cruzeiro, que tentaram reviver para apoiar os paramilitares e atacar a esquerda. O intermediário era um ex-agente do SNI, que acabou morto num barco, no Rio, quando denunciou que militares estavam exportando material nuclear para o Iraque por baixo da mesa. Um caso de fidelidade, Alexandre Von Baungarten era agente duplo, trabalhava para o Mossad, serviço secreto de Israel. Assim era que se fazia e resolvia as coisas.

Pouco interessa nomes a esta altura. Cinquenta anos depois, é mais importante termos uma ideia do ambiente em que se viveu, para entender que democracia é o pior regime do mundo, com exceção de todos os outros. Quem chegar perto de mim defendendo aquele golpe ordinário ou, inescrupulosamente, pedindo que voltemos àqueles tempos leva um pé d`ouvido. Esses dias estou sem paciência, é o transcurso de 50 anos de algo do qual, como diria Ulisses Guimarães, tenho ódio e nojo. Espero que a terra não lhes seja leve".

* Carlos Mauri Alexandrino foi jornalista e escritor, autor do livro "Sombras sobre Santos. Faleceu em 2017.